Uma Epopeia entre o Sagrado e o Profano: - Estudo Geral ...
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permanecemos, aliás, sujeitos – levou-o a legar “a outros e ao futuro mais correcta<br />
leitura deste motivo” 338 . De seguida, Maria Manuela Braga identificou o motivo como<br />
“Jovem nu com gadanha numa das mãos e caixa ou ampulheta na outra” 339 . Ora, como<br />
bem revelou a experiência de Elaine Block, a misericórdia revela um provérbio<br />
flamengo 340 , indício seguro das influências do cadeiral crúzio.<br />
“Estar sentado <strong>entre</strong> duas cadeiras”, deixar passar a ocasião graças a hesitações<br />
e indecisões escusadas e não obter nada além do desconforto, revela um defeito do<br />
carácter humano que a implacável tradição oral, cristalizada nos provérbios, não pode<br />
deixar passar. Assim, o motivo tem lugar nos Provérbios Flamengos de Pieter Brueghel<br />
(1559) 341 , verdadeiro álbum da tradição proverbial e popular dos Países Baixos do<br />
século XVI. A identificação do tipo de cadeira, que se encontra em várias obras, desde<br />
Vasco Fernandes a Brueghel e Rogier van der Weyden 342 , bastaria para perceber a<br />
influência do motivo e a sua ligação aos provérbios. No entanto, ele repete-se<br />
nitidamente, pelo menos em dois outros locais, no cadeiral holandês de Oude Kerk, em<br />
Amesterdão e no cadeiral alemão de Sankt Martinikirche em Emmerich 343 , que nos<br />
apresentam homens <strong>entre</strong> duas cadeiras idênticas às da misericórdia de Santa Cruz. O<br />
facto de ambos se apresentarem vestidos indicia, no entanto, uma particularidade da<br />
marginalia do cadeiral crúzio: o facto de todas as figuras humanas (excluindo,<br />
obviamente, as híbridas) que ilustram pecados, vícios ou defeitos, se encontrarem nuas.<br />
O significado desta opção terá eventualmente mais nuances do que aquelas que<br />
poderemos aqui explorar, sobretudo numa altura em que a nudez estava prestes a<br />
irromper no mundo das artes plásticas com especial intensidade e frequentemente sem a<br />
aposição de conotações negativas. No entanto, não podemos deixar de remeter esta<br />
utilização particular da nudez para uma eventual conotação de vergonha e predisposição<br />
para o pecado, associados às figuras edénicas de Adão e Eva. Despojados das suas<br />
roupas – que, de acordo com as implicações do pecado original deveriam ser marcas<br />
funestas da infelicidade humana, mas que afinal acabaram por se transformar em sinais<br />
de status e dignidade – os pecadores do cadeiral encontram-se já afastados do mundo<br />
338 PEREIRA, Augusto Nunes, Do Cadeiral de Santa Cruz, p. 61 e 62.<br />
339 BRAGA, Maria Manuela, Os Cadeirais de Coro no final da Idade Média em Portugal, p.67<br />
340 BLOCK, Elaine C., Corpus of Medieval Misericords: Iberia, p.9.<br />
341 Vide Vol. II, Anexo II, Figs. 128 e 129.<br />
342 Vide Vol. II, Anexo II, Figs. 132 e 133.<br />
343 Vide Vol. II, Anexo II, Figs. 130 e 131.<br />
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