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africana. Temos, portanto, há aproximadamente quatro décad<strong>as</strong>,<br />
a convivência, nem sempre harmoniosa, de du<strong>as</strong> apropriações<br />
distint<strong>as</strong>, até mesmo antagônic<strong>as</strong>, da afrodescendência ou da<br />
afro-baianidade.<br />
A afirmação da ancestralidade negra significou em Salvador,<br />
duradouramente, um programa de investimento turístico de<br />
governos extremamente autoritários e, ao mesmo tempo, um<br />
potencial libertário, de empoderamento de uma fração significativa<br />
da população da cidade que estava – e de certa forma ainda<br />
continua – alijada da cidadania e dos benefícios socioeconômicos<br />
advindos da florescente indústria do turismo cultural, bem<br />
como de outr<strong>as</strong> dimensões da indústria cultural.<br />
Por outro lado – e é isso que me interessa, são ess<strong>as</strong> questões<br />
que me parecem de extremo interesse <strong>para</strong> discutir uma política<br />
cultural ou polític<strong>as</strong> culturais <strong>para</strong> Salvador – Salvador é uma<br />
d<strong>as</strong> cidades br<strong>as</strong>ileir<strong>as</strong> em que os indicadores da desigualdade<br />
racial são mais veementes. Se no Br<strong>as</strong>il a renda da população<br />
negra ou mestiça corresponde à metade da renda da população<br />
branca, em Salvador ela não chega sequer a isso, ela é menos de<br />
40%. Em todos os demais indicadores da desigualdade racial,<br />
Salvador está em situação mais grave do que a média nacional,<br />
como também seus indicadores são mais graves do que qualquer<br />
outra região metropolitana do país.<br />
Este contexto <strong>para</strong>doxal, em que se articulam o elogio ou<br />
mesmo a elegia da negritude e a contundência da hierarquia<br />
e da desigualdade racial, não me parece um elemento lateral,<br />
quando se cogita de qualquer formulação de política cultural<br />
<strong>para</strong> Salvador. Ou seja, ao meu ver, pensar a cultura em Salvador<br />
significa enfrentar o <strong>para</strong>doxo desta cidade negra, desta cidade<br />
afrodescendente, desta cidade festiva, dançante e, ao mesmo<br />
tempo, desta cidade profundamente desigual, profundamente<br />
racista, profundamente discriminadora e profundamente violenta,<br />
n<strong>as</strong> su<strong>as</strong> relações inter-raciais.<br />
a cultura da cidade 169