Tradução de Ana Faria e Isabel Andrade - Saída de Emergência
Tradução de Ana Faria e Isabel Andrade - Saída de Emergência
Tradução de Ana Faria e Isabel Andrade - Saída de Emergência
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
Hoje tenho estado a pensar nos mortos.<br />
Estamos no último dia do ano velho. Os fetos que cobrem a colina<br />
tingiram-se <strong>de</strong> uma tonalida<strong>de</strong> acastanhada, os ulmeiros nas extremida<strong>de</strong>s<br />
do vale per<strong>de</strong>ram as folhas e a matança <strong>de</strong> inverno das nossas<br />
cabeças <strong>de</strong> gado já começou. Esta noite é Véspera do Samain.<br />
Esta noite, a cortina que separa os mortos dos vivos estremecerá,<br />
<strong>de</strong>sfi ar-se-á e acabará por <strong>de</strong>saparecer. Esta noite, os mortos atravessarão a<br />
ponte das espadas. Esta noite os mortos chegarão, vindos do Outro Mundo,<br />
mas nós não os veremos. Serão sombras diluídas na escuridão, simples<br />
sussurros numa noite sem vento, mas estarão presentes.<br />
O bispo Sansum, o santo que governa a nossa pequena comunida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> monges, faz troça <strong>de</strong>sta crença. Os mortos, diz ele, não têm corpos feitos<br />
<strong>de</strong> sombra, tão-pouco são capazes <strong>de</strong> atravessar a ponte das espadas.<br />
Em vez disso, jazem nos seus túmulos frios aguardando a última vinda <strong>de</strong><br />
Nosso Senhor Jesus Cristo. É uma atitu<strong>de</strong> digna, diz ele ainda, recordar os<br />
mortos e rezar pela imortalida<strong>de</strong> das suas almas, mas os seus corpos <strong>de</strong>sapareceram<br />
para sempre. São corruptos. Os olhos <strong>de</strong>rreteram-se para dar<br />
lugar a buracos negros incrustados nos crânios, os vermes liquefazem-lhes<br />
as barrigas e os ossos estão forrados com húmus. O santo insiste em dizer<br />
que os mortos não perturbam os vivos na Véspera do Samain, mas até ele<br />
tomará as precauções necessárias para <strong>de</strong>ixar um pão junto da lareira do<br />
mosteiro, esta noite. Fará <strong>de</strong> conta que se tratou <strong>de</strong> um <strong>de</strong>scuido da sua<br />
parte, mas, seja como for, esta noite haverá um pão e um cântaro com água<br />
ao lado das cinzas da cozinha.<br />
Eu <strong>de</strong>ixarei mais qualquer coisa. Uma taça <strong>de</strong> hidromel e um pedaço<br />
<strong>de</strong> salmão. São oferendas humil<strong>de</strong>s, mas é tudo o que posso dar, e esta noite<br />
colocá-las-ei no meio das sombras, junto à lareira. Em seguida irei até à<br />
minha cela <strong>de</strong> monge para acolher os mortos que virão até esta casa fria,<br />
situada nesta colina <strong>de</strong>spida.<br />
Passo a nomear os mortos. Ceinwyn, Guinevere, Nimue, Merlim,<br />
Lancelote, Galaad, Dian, Sagramor. A lista daria para encher dois pergaminhos.<br />
Tantos mortos. O som dos seus passos não provocará o mínimo<br />
sobressalto, tão-pouco assustará os ratos que vivem no telhado <strong>de</strong> colmo<br />
do mosteiro, mas até o bispo Sansum sabe que os nossos gatos arquearão<br />
os respetivos corpos e bufarão pelos cantos da cozinha quando as sombras<br />
21