A reconstrução da identidade em A jangada de pedra, de José ...
A reconstrução da identidade em A jangada de pedra, de José ...
A reconstrução da identidade em A jangada de pedra, de José ...
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
103<br />
esperar nos seus lugares que os homens se aproxim<strong>em</strong> e as<br />
cumpriment<strong>em</strong>, então oferecerão a mão ou <strong>da</strong>rão a face, <strong>de</strong> acordo com a<br />
confiança e o grau <strong>de</strong> intimi<strong>da</strong><strong>de</strong> e sua natureza, e farão o sorriso <strong>de</strong><br />
mulher, educado, ou insinuante, ou cúmplice, ou revelador, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> [...]<br />
Este gesto fez mover-se o chão <strong>de</strong> tábuas [do saguão hotel] como um<br />
convés, o arfar <strong>de</strong> um barco na vaga, lento e amplo. 235<br />
A expressão “mover-se o chão <strong>de</strong> tábuas” é facilmente reconheci<strong>da</strong> como a<br />
figurativização <strong>de</strong> um abalo nas tradições sociais <strong>de</strong> Portugal e na estrutura<br />
<strong>em</strong>ocional <strong>de</strong> <strong>José</strong> Anaiço, que é o hom<strong>em</strong> a qu<strong>em</strong> a mulher se dirige. E se este<br />
simples gesto <strong>de</strong> levantar-se já causou espanto, imagine-se então quando Joana<br />
Car<strong>da</strong>, no momento <strong>em</strong> que as personagens estão para <strong>de</strong>cidir qu<strong>em</strong> vai dormir<br />
on<strong>de</strong> na casa <strong>de</strong> Joaquim Sassa, vira-se para <strong>José</strong> Anaiço e dispara:<br />
[...] Nós ficamos juntos, <strong>em</strong> ver<strong>da</strong><strong>de</strong> está o mundo perdido se já<br />
as mulheres tomam iniciativas <strong>de</strong>ste alcance, antigamente havia<br />
regras. 236<br />
Está presente no romance, portanto, subjacente aos percursos figurativos<br />
relativos à personag<strong>em</strong> Joana Car<strong>da</strong> e também <strong>em</strong> outros, o t<strong>em</strong>a do “papel <strong>da</strong><br />
mulher” no processo <strong>de</strong> evolução <strong>da</strong>s estruturas sociais. Note-se a ironia lança<strong>da</strong><br />
sobre a própria história <strong>da</strong>s civilizações, cujos registros apontam s<strong>em</strong>pre<br />
protagonistas homens:<br />
[...] quando se encontram vestígios humanos antigos, são s<strong>em</strong>pre<br />
<strong>de</strong> homens [...] naquele t<strong>em</strong>po não havia mulheres, a Eva ain<strong>da</strong> não<br />
tinha sido cria<strong>da</strong>, <strong>de</strong>pois cria<strong>da</strong> ficou. 237<br />
Em A janga<strong>da</strong> <strong>de</strong> <strong>pedra</strong>, a mulher não é <strong>de</strong> modo algum <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte n<strong>em</strong><br />
“cria<strong>da</strong>” do hom<strong>em</strong>, ela é um ser <strong>em</strong>ancipado, corajoso, forte, mas que não se<br />
confun<strong>de</strong> <strong>em</strong> na<strong>da</strong> com o masculino, como se apreen<strong>de</strong> na conversa entre Joana<br />
Car<strong>da</strong> e Joaquim Sassa:<br />
235 Ibid<strong>em</strong>, pp.112-3.<br />
236 Ibid<strong>em</strong>, p.163.<br />
237 Ibid<strong>em</strong>, p.74.