A reconstrução da identidade em A jangada de pedra, de José ...
A reconstrução da identidade em A jangada de pedra, de José ...
A reconstrução da identidade em A jangada de pedra, de José ...
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
O verbo dizer no pretérito perfeito (disseram) mais a partícula integrante que<br />
marcam a introdução do discurso indireto. Embora o narrador esclareça que a<br />
<strong>de</strong>claração se <strong>de</strong>u “por estas exactas palavras”, na ver<strong>da</strong><strong>de</strong>, o verbo resultar<br />
conjugado no pretérito mais-que-perfeito (resultara) indica o t<strong>em</strong>po <strong>da</strong> narração e<br />
não do discurso direto do locutor <strong>da</strong> rádio, que só é percebido a partir <strong>da</strong> introdução<br />
do dêitico “neste momento”. A este tipo <strong>de</strong> relação entre discurso citante e discurso<br />
citado Bakhtin 219 dá o nome <strong>de</strong> discurso direto preparado, <strong>em</strong> que a subjetivi<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
<strong>da</strong> fala alheia aparece no sentido que mais convém ao narrador.<br />
É comum também no romance a utilização do que Bakhtin chama <strong>de</strong> discurso<br />
direto esvaziado, que ocorre quando, no contexto narrativo, a caracterização <strong>da</strong><br />
personag<strong>em</strong> lança sombras sobre seu discurso direto, ou seja, as apreciações e o<br />
valor <strong>em</strong>ocional com os quais o narrador carrega a representação objetiva <strong>da</strong><br />
personag<strong>em</strong> transmit<strong>em</strong>-se às palavras <strong>de</strong>sta; é usado mais para caracterizar a<br />
personag<strong>em</strong> do que para transmitir o conteúdo s<strong>em</strong>ântico <strong>de</strong> sua enunciação.<br />
Observe-se como o narrador parece ter consciência a respeito <strong>de</strong>ssa possibili<strong>da</strong><strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> citação:<br />
[...] Vê-se pelas feições do rosto, e pelos bilhetes <strong>de</strong> i<strong>de</strong>nti<strong>da</strong><strong>de</strong> se<br />
confirmaria, que os sol<strong>da</strong>dos são realmente filhos do povo, mas o major<br />
<strong>de</strong>les, ou também o é e repudiou nos assentos <strong>da</strong> escola militar a humil<strong>de</strong><br />
ascendência, ou pertence <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o nascimento às classes superiores, para<br />
qu<strong>em</strong> os hotéis do Algarve foram feitos, pela resposta <strong>da</strong><strong>da</strong> não se pô<strong>de</strong><br />
saber, Chegu<strong>em</strong>-se lá para trás, ou levam nas trombas, este grosseiro<br />
falar não é apanágio exclusivo <strong>da</strong>s cama<strong>da</strong>s baixas. 220<br />
O discurso direto po<strong>de</strong> estar “oculto” no contexto narrativo e aparecer <strong>de</strong> fato<br />
no discurso direto <strong>da</strong> personag<strong>em</strong>. Nesse caso, a que Bakhtin dá o nome <strong>de</strong><br />
discurso direto antecipado e diss<strong>em</strong>inado, a preparação do discurso citado e a<br />
antecipação <strong>de</strong> seu t<strong>em</strong>a, seus valores e suas inflexões na narração contaminam o<br />
contexto narrativo com as características do discurso <strong>da</strong> personag<strong>em</strong> e o tornam<br />
219 BAKHTIN Mikhail. Marxismo e filosofia <strong>da</strong> linguag<strong>em</strong>. Trad. Michel Lahud e Yara Frateschi<br />
Vieira. 7.ed.,São Paulo, Hucitec, 1995, pp. 166-72.<br />
220 A janga<strong>da</strong> <strong>de</strong> <strong>pedra</strong>, p.96.<br />
95