A reconstrução da identidade em A jangada de pedra, de José ...
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O cão, com um fio <strong>de</strong> lá azul na boca, leva os viajantes para as terras <strong>da</strong><br />
Galícia, nas proximi<strong>da</strong><strong>de</strong>s <strong>de</strong> Santiago <strong>de</strong> Compostela. É Maria Guavaira qu<strong>em</strong> os<br />
recebe, como se já os esperasse.<br />
Subitamente o cão pára. O sol está raso com a cumea<strong>da</strong> dos<br />
montes, adivinha-se o mar do outro lado. A estra<strong>da</strong> <strong>de</strong>sce <strong>em</strong> curvas [...]<br />
Em frente, a meia encosta, há uma casa gran<strong>de</strong> [...] O sol escon<strong>de</strong>u-se.<br />
Então um fio azul ondulou no ar, quase invisível na transparência,<br />
como se procurasse apoio, roçou as mãos e os rostos, Joaquim Sassa<br />
segurou-o [...] Que faço com isso, perguntou, mas os outros não<br />
podiam respon<strong>de</strong>r, o cão sim, saiu <strong>da</strong> estra<strong>da</strong> e pôs-se a <strong>de</strong>scer a<br />
encosta suave, foi atrás <strong>de</strong>le Joaquim Sassa, a sua mão levanta<strong>da</strong><br />
seguia o fio azul [...] Quando pararam num terreiro <strong>de</strong>fronte <strong>da</strong> casa,<br />
chegava Joaquim Sassa a <strong>de</strong>z passos <strong>da</strong> porta, que estava aberta [...] Do<br />
interior escuro <strong>da</strong> casa surgiu uma mulher. Tinha na mão um fio, o<br />
mesmo que Joaquim Sassa continuava a segurar. 55<br />
Como se vê, o espírito <strong>de</strong> aventura <strong>de</strong>u a essas pessoas a possibili<strong>da</strong><strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
unir<strong>em</strong>-se umas às outras, <strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrir<strong>em</strong> um barco <strong>de</strong> <strong>pedra</strong> oculto por trás <strong>da</strong>s<br />
montanhas na costa <strong>da</strong> Galícia e <strong>de</strong> encontrar<strong>em</strong> um meio <strong>de</strong> vi<strong>da</strong> (eles passam a<br />
ven<strong>de</strong>r roupas) no meio do caos que se transformou a península <strong>de</strong>pois do<br />
rompimento dos Pireneus.<br />
Ocorreram três êxodos num curto espaço <strong>de</strong> t<strong>em</strong>po. O primeiro foi o dos<br />
turistas estrangeiros, quando se <strong>de</strong>u a notícia oficial <strong>da</strong> ruptura. O segundo, <strong>da</strong>s<br />
classes mais abasta<strong>da</strong>s, verificou-se quando se teve a certeza <strong>de</strong> que a fratura era<br />
irreparável. O terceiro, <strong>da</strong> população litorânea, teve como causa o pânico. A<br />
península parecia ir <strong>de</strong> encontro aos Açores. Mas é do meio do caos que surge o<br />
novo: o engravi<strong>da</strong>mento coletivo ou, <strong>em</strong> outras palavras, a geração <strong>de</strong> milhões <strong>de</strong><br />
crianças cujos pais não se sabe ao certo qu<strong>em</strong> sejam. Po<strong>de</strong> ser o velho<br />
farmacêutico, no caso <strong>da</strong>s mulheres nomea<strong>da</strong>s, pod<strong>em</strong> ser as “águas murmurantes”<br />
ou o “sopro dos ventos”, <strong>em</strong> se tratando <strong>da</strong>s mulheres <strong>em</strong> geral. O mais provável, no<br />
entanto, é que essas crianças sejam filhas <strong>da</strong> busca pelo <strong>de</strong>sconhecido <strong>em</strong> que se<br />
lançou a península; filhas <strong>da</strong> aventura que po<strong>de</strong> levar até mesmo à morte.<br />
55 A janga<strong>da</strong> <strong>de</strong> <strong>pedra</strong>, pp. 174-6.<br />
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