A reconstrução da identidade em A jangada de pedra, de José ...
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transcendência do autor real que concebeu a história), o narrador comporta-<br />
se como enti<strong>da</strong><strong>de</strong> d<strong>em</strong>iúrgica, controlando e manipulando soberanamente<br />
os eventos relatados, as personagens que os interpretam, o t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que<br />
se mov<strong>em</strong>, os cenários <strong>em</strong> que se situam, etc.<br />
É o caso do narrador <strong>de</strong> A janga<strong>da</strong> <strong>de</strong> <strong>pedra</strong>, onisciente na maior parte <strong>da</strong><br />
narrativa. Diz-se maior parte porque <strong>em</strong> <strong>de</strong>terminados momentos ele abdica <strong>de</strong> sua<br />
onisciência:<br />
[...] Por isso, e talvez também por ter Pedro Orce repetido a<br />
manigância <strong>de</strong> murmurar-lhe ao ouvido palavras que até agora ain<strong>da</strong> não<br />
conseguimos averiguar, o cão entrou no carro com o mais natural ar do<br />
mundo. 202<br />
No trecho acima, essa atitu<strong>de</strong> narrativa contribui para a criação <strong>de</strong> uma aura<br />
<strong>de</strong> mistério <strong>em</strong> torno <strong>da</strong> relação que se estabelece entre o farmacêutico e o cão. O<br />
próximo fragmento ain<strong>da</strong> ilustra a utilização <strong>de</strong>sse recurso, porém com a obtenção<br />
<strong>de</strong> outro tipo <strong>de</strong> efeito:<br />
[...] d<strong>em</strong>oraram-se nos arranjos corporais, barbeados os homens,<br />
poli<strong>da</strong>s as mulheres, e as roupas escova<strong>da</strong>s, num recanto a<strong>de</strong>quado do<br />
arvoredo, para on<strong>de</strong> transportaram, a bal<strong>de</strong>, água <strong>da</strong> ribeira, lavaram-se,<br />
um por um, os casais, não se sabe se inteiramente nus, porque <strong>de</strong>les<br />
não houve test<strong>em</strong>unhas. 203<br />
Ao afastar-se do foco, o narrador d<strong>em</strong>onstra certo pudor <strong>em</strong> “presenciar” a<br />
nu<strong>de</strong>z <strong>da</strong>s personagens. Mas po<strong>de</strong> expressar também discrição:<br />
202 A janga<strong>da</strong> <strong>de</strong> <strong>pedra</strong>, p. 168.<br />
203 Ibid<strong>em</strong>, p.245.<br />
204 Ibid<strong>em</strong>, pp.15-6.<br />
[...] não pergunt<strong>em</strong>os já a <strong>José</strong> Anaiço qu<strong>em</strong> é e o que faz na<br />
vi<strong>da</strong>, don<strong>de</strong> veio e para on<strong>de</strong> vai, o que <strong>de</strong>le houver <strong>de</strong> saber-se só por<br />
ele se saberá, esta parcimónia informativa, <strong>de</strong>verão igualmente<br />
cont<strong>em</strong>plar Joana Car<strong>da</strong> e a sua vara <strong>de</strong> negrilho, Joaquim Sassa e a<br />
<strong>pedra</strong> que atirou ao mar, Pedro Orce e a ca<strong>de</strong>ira don<strong>de</strong> se levantou. 204<br />
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