Blogs íntimos: percursos no contexto discursivo do meio - ECA-USP
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episódica (Bruner, 1995: 147), “sistema pelo qual eventos específicos e impressões<br />
passadas são adquiri<strong>do</strong>s, armazena<strong>do</strong>s e recupera<strong>do</strong>s... ele garante o acesso,<br />
ainda que enviesa<strong>do</strong>, aos eventos que constituem os anais de <strong>no</strong>ssas autobiografias”<br />
e a memória semântica. A memória semântica (Bruner, 1995: 147) “trafega na<br />
memória em: termos de significa<strong>do</strong> e generalidade, e, como podemos imaginar, sua<br />
esfe ra fica <strong>no</strong>s limites entre o que, <strong>no</strong> senti<strong>do</strong> comum, é chama<strong>do</strong> ‘pensamen to’ e<br />
aquilo a que <strong>no</strong>rmalmente chamamos memória”. É por <strong>meio</strong> da memória semântica<br />
que a cultura atua sobre a mente.<br />
Assim, para Bruner (1995: 147), o processo de “organização de uma autobiografia”<br />
é um hábil ato de se transferir uma amostragem de memórias episódicas<br />
para uma densa matriz de memória semântica organizada e culturalmente esquematizada.<br />
As narrativas episódicas individuais interagem com a memória coletiva,<br />
constituin<strong>do</strong> um texto de origem híbrida, mas marca<strong>do</strong> por um estilo singular.<br />
Esse processo de estratificação <strong>do</strong> tempo pela memória episódica está presente<br />
na estrutura que o enuncia<strong>do</strong>r propõe ao enunciatário, que determina uma leitura<br />
linear e cro<strong>no</strong>lógica <strong>do</strong> post. A composição <strong>do</strong>s blogs, em forma de posts referencia<strong>do</strong>s<br />
temporalmente, já justifica uma estratificação temporal na qual se apóia a<br />
memória episódica. No trecho apresenta<strong>do</strong>, <strong>no</strong> entanto, essa estratificação repetese<br />
internamente ao post. Trata-se de uma disposição sintática que corrobora uma<br />
simultaneidade temporal condensada, um tempo que voa. Os acontecime<strong>no</strong>s são<br />
conta<strong>do</strong>s em alta velocidade, geran<strong>do</strong> um efeito de senti<strong>do</strong> de instantaneidade que<br />
vai ao encontro da velocidade <strong>do</strong>s acontecimentos. Só com o tempo sen<strong>do</strong> estratifica<strong>do</strong><br />
é possível narrar tamanha condensação narrativa.<br />
O espaço <strong>do</strong> acontecimento comprime-se, mas ele nem sequer importa, pois<br />
é apenas um local de onde emergem todas as outras espacialidades da narrativa<br />
contada. Em vez de enfatizar uma sucessividade, o enuncia<strong>do</strong>r conta uma história<br />
condensada <strong>no</strong> tempo, como se visualizasse de fora da cena enunciativa os acontecimentos<br />
que se passam com seu personagem em da<strong>do</strong> local.<br />
O enuncia<strong>do</strong>r não remete, em parte alguma <strong>do</strong> trecho analisa<strong>do</strong> a qualquer referência<br />
ao espaco e ao tempo da enunciação (são todas debreagens <strong>do</strong> enuncia<strong>do</strong>),<br />
ou seja, não menciona o espaço <strong>do</strong> qual emerge a escrita, <strong>do</strong> ciberespaço, mas<br />
apenas o <strong>do</strong>s acontecimentos. Ele ig<strong>no</strong>ra o tempo e o espaço <strong>do</strong> ciberespaço para<br />
criar uma simulacro de realidade que exclui o ato da escrita, instauran<strong>do</strong> um outro<br />
tempo e espaço paralelos aos da enunciação.<br />
No entanto, o enuncia<strong>do</strong>, <strong>no</strong> tempo e <strong>no</strong> espaço <strong>do</strong>s acontecimentos, mimetiza<br />
as condições de enunciação hipertextuais. Embora constituí<strong>do</strong>s majoritariamente<br />
por debreagens enunciativas da enunciação, o enuncia<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s trechos busca passar<br />
um ethos descentra<strong>do</strong>, tanto espacial quanto temporalmente, representan<strong>do</strong> enunciativamente<br />
os pressuspostas das condições de produção de sua escrita.<br />
Essas condições de produção exaltam um espaço e um tempo aos quais se refere<br />
Bauman (2001): o espaço na contemporaneidade é desterritorializa<strong>do</strong>, não impõe<br />
mais limites à ação. O tempo toma a forma da instantaneidade, como o vôo a que<br />
se refere o enuncia<strong>do</strong>r <strong>no</strong> trecho relata<strong>do</strong>, em movimentos rápi<strong>do</strong>s em um curto<br />
perío<strong>do</strong> de tempo, <strong>no</strong> qual busca rememorar o passa<strong>do</strong>.<br />
A busca pela recuperação <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> é uma constante da contemporaneidade.<br />
Para Jean Baudrillard (2001: 46), uma obsessão em reviver “é a memorização fanática,<br />
uma fascinação pelas comemorações, a listagem de lugares da memória, a exaltação<br />
da herança”. Essa obsessão, segun<strong>do</strong> Baudrillard, leva ao desaparecimento da<br />
própria memória, que, por sua vez, leva ao desaparecimento <strong>do</strong> real, reduzin<strong>do</strong>-o a<br />
um simulacro: “isso resulta em transformar o próprio passa<strong>do</strong> num clone e congelá-<br />
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