Blogs íntimos: percursos no contexto discursivo do meio - ECA-USP
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epresenta a unidade <strong>do</strong> sujeito cartesia<strong>no</strong>, capaz de, pela ciência, atingir o progresso<br />
que emanciparia o sujeito moder<strong>no</strong>, <strong>do</strong><strong>no</strong> de seus desejos e escolhas racionais.<br />
A unicidade <strong>do</strong> sujeito e da sua obra, sua coerência conceitual e sua originalidade<br />
asseguram ao autor a autenticidade de seu discurso, conferin<strong>do</strong>-lhe responsabilidade<br />
econômica e social, uma vez que o sujeito se transforma também, com o<br />
projeto moder<strong>no</strong>, em um produtor para o merca<strong>do</strong>, remeten<strong>do</strong> à institucionalização<br />
<strong>do</strong> direito autoral. Para Foucault (1992: 47),<br />
(...) os textos, os livros, os discursos começaram efetivamente a ter autores (outros<br />
que não personagens míticas ou figuras sacralizadas e sacralizantes) na medida em<br />
que o autor se tor<strong>no</strong>u passível de ser puni<strong>do</strong>, isto é, na medida em que os discursos<br />
se tornaram transgressores.<br />
Se na modernidade o conceito de autoria se apóia na idéia de individualidade,<br />
identidade, objetividade e coerência <strong>do</strong> autor, na contemporaneidade, o estabelecimento<br />
da propriedade fica dificulta<strong>do</strong>. Essa incongruência pode ser examinada<br />
em diversos tipos de trabalhos cooperativos, inclusive procedimentos científicos e<br />
artísticos, que questionam a idéia de propriedade autoral.<br />
Alguns estudiosos demonstram que a Internet expõe de maneira mais clara essa<br />
ausência de distinção de papéis, pois ela favoreceria cada indivíduo a assumir várias<br />
identificações ao mesmo tempo: to<strong>do</strong>s podem ser autores, leitores, agentes, produtores,<br />
editores etc. A Internet como sistema tec<strong>no</strong>lógico produzi<strong>do</strong> socialmente<br />
é também um produto social que pressupõe a falta de distinção entre produtor e<br />
usuário.<br />
De forma mais branda, Chartier sugere que a revolução eletrônica, além de instaurar<br />
uma ruptura na ordem <strong>do</strong>s discursos, promove uma cisão <strong>no</strong> que ele chama<br />
de ordem das razões e das propriedades. A ordem das razões, segun<strong>do</strong> ele, é aquela<br />
originária das modalidades de construção e crédito <strong>do</strong>s discursos <strong>do</strong> saber, transformada<br />
pela revolução da textualidade digital que, por um la<strong>do</strong>,<br />
Permite desenvolver as argumentações e demonstrações segun<strong>do</strong> uma lógica que<br />
não é necessariamente linear nem dedutiva, tal como dá a entender a inscrição de<br />
um texto sobre uma página, mas que pode ser aberta, clara e racional graças à multiplicação<br />
<strong>do</strong>s vínculos hipertextuais. Por outro, e como conseqüência, o leitor pode<br />
comprovar a validade de qualquer demonstração consultan<strong>do</strong> pessoalmente os textos<br />
(mas também as imagens, as palavras gravadas ou composições musicais) que são<br />
o objeto de análise se, evidentemente, estiverem acessíveis de forma digitalizada<br />
(Chartier, 2002: 24).<br />
A ordem da propriedade, tanto em senti<strong>do</strong> jurídico quanto textual, baseada na<br />
estabilidade, singularidade e originalidade <strong>do</strong> processo de autoria na modernidade,<br />
sofre transformações com o surgimento <strong>do</strong> texto eletrônico, ti<strong>do</strong> como móvel, aberto<br />
e maleável, possibilitan<strong>do</strong> ao leitor intervir, recortar, deslocar, estender, recompor<br />
as unidades das quais se apodera. O mun<strong>do</strong> digital, segun<strong>do</strong> o autor, coloca em<br />
questão a identidade singular e o regime de propriedade, pois:<br />
Nesse processo desaparece a atribuição <strong>do</strong>s textos ao <strong>no</strong>me de seu autor, já que estão<br />
constantemente modifica<strong>do</strong>s por uma escritura coletiva, múltipla, polifônica, que dá<br />
realidade ao sonho de Foucault quanto ao desaparecimento desejável da apropriação<br />
individual <strong>do</strong>s discursos – o que ele chamava a ‘função-autor’ (Chartier, 2002: 25).<br />
58 | BLOgS ÍNtIMOS: PERCuRSOS DE SENtIDO NO CONtEXtO DISCuRSIVO DO MEIO DIgItAL