conteúdo integral do livro - Assembleia da República
conteúdo integral do livro - Assembleia da República
conteúdo integral do livro - Assembleia da República
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
O Sr. Presidente: — Tem a palavra o Sr.<br />
Deputa<strong>do</strong> Almei<strong>da</strong> Santos.<br />
O Sr. Almei<strong>da</strong> Santos (PS): — Sr. Presidente<br />
<strong>da</strong> <strong>República</strong>, Sr. Presidente <strong>da</strong> <strong>Assembleia</strong> <strong>da</strong> <strong>República</strong>, Sr.<br />
Presidente <strong>do</strong> Supremo Tribunal de Justiça, Srs. Conselheiros <strong>da</strong><br />
Revolução, Sr. Primeiro-Ministro, Srs. Membros <strong>do</strong> Governo e<br />
Srs. Deputa<strong>do</strong>s: Encontram-se aqui reuni<strong>do</strong>s representantes de<br />
to<strong>do</strong>s os Órgãos de Soberania para celebrarmos a <strong>da</strong>ta histórica<br />
<strong>do</strong> reencontro de Portugal consigo mesmo.<br />
Por to<strong>do</strong> o país, o povo soberano, que nos dias fastos não delega<br />
a sua alegria, comunga nesta festa nacional a que só se escusam<br />
os que deploram a libertação <strong>do</strong>s homens e <strong>do</strong>s povos, combatem<br />
a democracia, recusam a paz e encaram os direitos <strong>do</strong> homem,<br />
por mais categóricos e universais que se apresentem, como violação<br />
catastrófica <strong>do</strong>s seus privilégios de classe.<br />
To<strong>do</strong> o bem tem o preço de algum mal. E é talvez preciso que continuem<br />
a subsistir alguns tiranos, belicistas e opressores para que a<br />
harmonia entre os homens e a sua organização em socie<strong>da</strong>des<br />
políticas livres, democráticas e justas continuem a revestir-se <strong>do</strong><br />
atractivo de uma aspiração inatingi<strong>da</strong>, de uma luta incessantemente<br />
renova<strong>da</strong>, <strong>do</strong> tempero dionisíaco de uma utópica civitas dei.<br />
Tempos são estes, os que vivemos, que convi<strong>da</strong>m à reflexão<br />
sobre a precarie<strong>da</strong>de <strong>da</strong>s vitórias alcança<strong>da</strong>s. O dia de hoje<br />
será mais belo se for só de alegria. Mas será mais útil se for<br />
também de meditação e de balanço. De aferição <strong>da</strong> nossa disposição<br />
de espírito para levarmos por diante a obra começa<strong>da</strong><br />
ou para repousarmos à sombra precária <strong>do</strong>s resulta<strong>do</strong>s consegui<strong>do</strong>s.<br />
De Gaulle, em situação de algum mo<strong>do</strong> paralela, teve um dia esta<br />
explosão cominatória: «É preciso saber se os Franceses querem<br />
refazer a França ou ir <strong>do</strong>rmir». Eu não a reconstruirei sem eles.<br />
O devir será tanto menos fatídico quanto mais cui<strong>da</strong><strong>do</strong>samente o<br />
prepararmos. A melhor homenagem que poderemos hoje prestar ao<br />
25 de Abril é a constante retoma<strong>da</strong> <strong>do</strong> seu espírito. É impregnarmos<br />
dele o nosso quotidiano.<br />
Celebramos hoje o reencontro de Portugal com a liber<strong>da</strong>de. E,<br />
como só se conhece ver<strong>da</strong>deiramente a liber<strong>da</strong>de quan<strong>do</strong> se a<br />
perde, bom é que recordemos — sobretu<strong>do</strong> para os jovens que já<br />
não padeceram o sofrimento adulto <strong>da</strong> sua privação e para os que<br />
<strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de nos privaram e de novo tentam destruí-la — o que<br />
foi esse holocausto civil de to<strong>do</strong> um povo abafa<strong>do</strong> na sua espontanei<strong>da</strong>de,<br />
embruteci<strong>do</strong> no seu pensamento, amoleci<strong>do</strong> na sua<br />
Sessão solene comemorativa <strong>do</strong> 25 de Abril<br />
1980<br />
Almei<strong>da</strong> Santos<br />
PS<br />
119<br />
vontade, silencia<strong>do</strong> na sua voz, acovar<strong>da</strong><strong>do</strong> na sua coragem pela<br />
mais longa ditadura <strong>da</strong> Europa <strong>do</strong>s direitos <strong>do</strong> homem!<br />
Vozes <strong>do</strong> PS: — Muito bem!<br />
O Ora<strong>do</strong>r: — Os poderes <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> concentra<strong>do</strong> num só homem;<br />
o voto reduzi<strong>do</strong> a uma farsa; a justiça converti<strong>da</strong> numa comédia;<br />
a segurança traduzi<strong>da</strong> num terror; a intimi<strong>da</strong>de desfeita numa<br />
devassa; a consciência ultraja<strong>da</strong> numa tutela; a informação<br />
expressa num diktat; as colónias incendia<strong>da</strong>s numa guerra; as<br />
relações exteriores baliza<strong>da</strong>s num cerco; o ci<strong>da</strong>dão atola<strong>do</strong> num<br />
pântano.<br />
Aplausos <strong>do</strong> PS, <strong>do</strong> PCP e <strong>do</strong> MDP/CDE.<br />
É profilático lembrar. Lembrar que vivemos com um esbirro em<br />
ca<strong>da</strong> esquina; um ouvi<strong>do</strong> em ca<strong>da</strong> telefone; um pé-de-cabra policial<br />
em ca<strong>da</strong> porta; uma espreitadela pidesca em ca<strong>da</strong> carta; um<br />
expurgo em ca<strong>da</strong> intimi<strong>da</strong>de; um casse-tête em ca<strong>da</strong> grito; um<br />
man<strong>da</strong>to de captura em ca<strong>da</strong> capricho; uma ordem de morrer em<br />
ca<strong>da</strong> jovem; uma injustiça em ca<strong>da</strong> salário; uma violação em ca<strong>da</strong><br />
consciência.<br />
Vozes <strong>do</strong> PS: — Muito bem!<br />
O Ora<strong>do</strong>r: — Era este o Portugal feu<strong>da</strong>liza<strong>do</strong>, belicista, neurótico<br />
e solitário de 24 de Abril. A 25 foi a aurora, a descompressão, o<br />
pensamento livre, a palavra solta. Só que, já sem o hábito <strong>da</strong><br />
liber<strong>da</strong>de, ninguém nos deteve nas fronteiras <strong>da</strong> embriaguês de<br />
sermos livres, e a liber<strong>da</strong>de pôde de novo, e por momentos,<br />
abeirar-se <strong>da</strong> negação de si mesma.<br />
Mas refez-se — aliás, refizemo-la — e seguiu rumo à forja de<br />
S. Bento, a aprontar num ápice a Constituição <strong>da</strong> <strong>República</strong>,<br />
assim ao jeito de quem edifica uma fortaleza de espírito, de civilização<br />
e de história, e capta nela a alma <strong>do</strong> povo.<br />
Escassos anos volvi<strong>do</strong>s, tol<strong>da</strong>-nos de novo a alegria a sombra de<br />
uma apreensão. Para alguns a liber<strong>da</strong>de começa a ser um hábito,<br />
mas não é ain<strong>da</strong> um sentimento.<br />
E a Constituição <strong>da</strong> <strong>República</strong>, que no essencial devia ser um<br />
<strong>do</strong>gma, é claramente encara<strong>da</strong> por uns tantos como expressão<br />
apócrifa de um falso senti<strong>do</strong> de afirmação colectiva.<br />
Bom é que nos enten<strong>da</strong>mos. Depois de termos conheci<strong>do</strong> o <strong>do</strong>ce<br />
sabor <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de, é duplamente difícil voltarmos a viver sem<br />
ela. E bom é que os sopra<strong>do</strong>res de nuvens se tenham por notifica<strong>do</strong>s<br />
de que a tolerância confuciana de Abril não deve iludi-los<br />
sobre a possibili<strong>da</strong>de de recuperarem o «paraíso perdi<strong>do</strong>» <strong>do</strong>s seus<br />
latifúndios, <strong>do</strong>s seus monopólios, <strong>do</strong>s seus privilégios, <strong>da</strong> glória<br />
indisputa<strong>da</strong> de man<strong>da</strong>r.