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conteúdo integral do livro - Assembleia da República

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O Sr. Presidente <strong>da</strong> <strong>Assembleia</strong> <strong>da</strong><br />

<strong>República</strong> Vasco <strong>da</strong> Gama Fernandes:<br />

— Sr. Presidente <strong>da</strong> <strong>República</strong>, Srs.<br />

Deputa<strong>do</strong>s: Na madruga<strong>da</strong> <strong>do</strong> dia 25 de Abril acordei<br />

estremunha<strong>do</strong> com a notícia de que o Exército se revoltara contra<br />

a ditadura e se propunha reintegrar Portugal na sen<strong>da</strong> <strong>da</strong> civilização.<br />

Vesti-me à pressa e no fim <strong>da</strong> madruga<strong>da</strong> estava no único posto<br />

que me era acessível: a re<strong>da</strong>cção <strong>do</strong> jornal «A <strong>República</strong>», velho<br />

baluarte in<strong>do</strong>mável e in<strong>do</strong>ma<strong>do</strong>, que, verticalmente, se batera<br />

sempre pela digni<strong>da</strong>de cívica deste país.<br />

Aplausos <strong>do</strong>s Deputa<strong>do</strong>s <strong>do</strong> PS, PSD e alguns <strong>do</strong> CDS.<br />

Ao subir a minha rua íngreme até atingir a Escola Politécnica<br />

quase que me ia faltan<strong>do</strong> o ar.<br />

Risos.<br />

Sentia sobre o peito o peso de quase cinquenta anos de arbítrio,<br />

recor<strong>da</strong>va-me comovi<strong>do</strong>, <strong>da</strong> minha vi<strong>da</strong> e <strong>do</strong>s que eram como eu:<br />

uma moci<strong>da</strong>de sacrifica<strong>da</strong>, muita dela frustra<strong>da</strong>, o rosário infinito<br />

<strong>da</strong>s amarguras e <strong>da</strong>s desilusões passa<strong>da</strong>s pelos seus mortos e pelos<br />

que envelheceram na dura caminha<strong>da</strong>.<br />

Lembrei-me <strong>da</strong>s cadeias, minhas e <strong>do</strong>s outros, as nossas deportações,<br />

os longos exílios, a odisseia <strong>da</strong>s famílias, a <strong>do</strong>r <strong>do</strong>s amigos.<br />

Ao atingir o cimo <strong>da</strong> calça<strong>da</strong>, as lágrimas corriam-me pela cara e<br />

com elas as lágrimas <strong>do</strong>s que a mim se juntaram, conheci<strong>do</strong>s e<br />

desconheci<strong>do</strong>s, como se se tivessem aberto de par em par os<br />

gonzos <strong>da</strong>s catacumbas.<br />

Seria possível? Teria chega<strong>do</strong> a hora? O que era aquilo?<br />

A pouco e pouco fui toman<strong>do</strong> consciência e serenan<strong>do</strong> os nervos.<br />

À minha volta apareciam cravos vermelhos de to<strong>do</strong>s os la<strong>do</strong>s,<br />

como se Lisboa se despovoasse e arrancasse esses cravos <strong>do</strong>s<br />

jardins ou <strong>da</strong>s estufas que eu nunca pressentira.<br />

Chegavam aos ouvi<strong>do</strong>s canções de libertação. A Grân<strong>do</strong>la Morena<br />

que eu já ouvira pela telefonia transformava-se em multimo<strong>do</strong> e<br />

multiforme coro popular.<br />

Não havia dúvi<strong>da</strong>s: ao velho combatente chegara a sua hora.<br />

Os jovens capitães e a sua tropa desfilavam pelas ruas, tomavam<br />

posições, cercavam o Quartel <strong>do</strong> Carmo, onde o dita<strong>do</strong>r se acoitara<br />

ensimesma<strong>do</strong> e perplexo. Aproximei-me <strong>da</strong> Rua de António<br />

Maria Car<strong>do</strong>so tão minha conheci<strong>da</strong> quan<strong>do</strong> por ela passava a<br />

Sessão solene comemorativa <strong>do</strong> 25 de Abril<br />

1977<br />

Vasco <strong>da</strong> Gama Fernandes<br />

Presidente <strong>da</strong> <strong>Assembleia</strong> <strong>da</strong> <strong>República</strong><br />

33<br />

caminho <strong>da</strong> PIDE e junto às portas desta assisti a um carnaval<br />

esquisito <strong>do</strong>s que entravam e saíam, <strong>do</strong>s que ameaçavam e não eram<br />

<strong>do</strong>mina<strong>do</strong>s. Uma confusão que ain<strong>da</strong> hoje não consigo explicar.<br />

Mas o resto era aquilo que estava à minha frente, um país que se<br />

erguia <strong>da</strong> letargia de 50 anos de opróbrio, e ali estava na rua,<br />

mulheres, muitas mulheres, homens, muitos homens, jovens<br />

criaturas às centenas e aos milhares.<br />

Portugal acor<strong>da</strong>ra naquela madruga<strong>da</strong> <strong>do</strong> dramático e demoníaco<br />

intervalo e propunha-se honrar a sua história, procuran<strong>do</strong> os<br />

caminhos <strong>do</strong> futuro, que nunca, por nunca serem, poderiam ser<br />

os <strong>da</strong> ilegali<strong>da</strong>de e <strong>da</strong> tirania.<br />

Na ver<strong>da</strong>de Fernan<strong>do</strong> Pessoa tinha razão — o Pessoa que já não<br />

vivera a hora — quan<strong>do</strong> nos asseverou em certa altura de que vale<br />

a pena e só não vale a pena para os que têm alma pequena.<br />

Efectivamente, uma coisa fora a milícia que nos <strong>do</strong>minara e<br />

amesquinhara, e outra o povo que jamais claudicara nem perdera<br />

as esperanças, porque sempre tivera uma alma grande que nem<br />

to<strong>do</strong>s os dita<strong>do</strong>res juntos conseguiram perverter.<br />

A história desse povo ain<strong>da</strong> está por contar e merece bem ser<br />

recor<strong>da</strong><strong>da</strong>, na singeleza <strong>da</strong>s suas existências precárias, na valentia<br />

<strong>do</strong>s que se não rendem — venci<strong>do</strong>s mas não convenci<strong>do</strong>s — esse<br />

povo que povoara os campos <strong>do</strong> extermínio, e vivera <strong>do</strong>ri<strong>da</strong>mente<br />

exila<strong>do</strong> dentro <strong>da</strong> sua própria Pátria.<br />

Que venham os escritores, que venham os prosa<strong>do</strong>res e os poetas,<br />

os artistas plásticos e os inspira<strong>do</strong>s <strong>da</strong> música, que consigam firmar<br />

para a eterni<strong>da</strong>de a gesta maravilhosa que ondeava por cima<br />

<strong>da</strong> multidão, uma afirmação viril de heróica inconformi<strong>da</strong>de.<br />

Fora sempre assim, aliás, a história desse povo que se batera nas<br />

barrica<strong>da</strong>s de 1383 e nas barrica<strong>da</strong>s de 1640, nas agruras <strong>da</strong>s<br />

lutas liberais, vencen<strong>do</strong> os dita<strong>do</strong>res <strong>do</strong> tempo e que, em 5 de<br />

Outubro de 1910, maltrapilhos e deser<strong>da</strong><strong>do</strong>s, ergueram nos seus<br />

punhos a <strong>República</strong> imortal, fincan<strong>do</strong> para sempre na Rotun<strong>da</strong><br />

um regime, que, empobreci<strong>do</strong> e desfeitea<strong>do</strong>, nunca deixou de ser<br />

o símbolo, com o seu hino e com a sua bandeira, o grande farol<br />

rotativo de fé inabalável.<br />

Mais uma vez ele aí estava, a pouco e pouco por to<strong>do</strong> o País, vin<strong>do</strong><br />

para a rua, acamara<strong>da</strong>n<strong>do</strong> com as forças arma<strong>da</strong>s, na tarefa<br />

comum de nos fazer gente.<br />

Foi esta emoção, a profun<strong>da</strong> emoção, abraços por to<strong>do</strong>s os la<strong>do</strong>s,<br />

beijos de mulheres simples, que transformaram a manhã numa<br />

autêntica sinfonia, guia<strong>da</strong> pelo mestre invisível que era a consciência<br />

nacional.<br />

Foi esta a minha manhã de 25 de Abril de 1974.<br />

Com igual comoção a evoco no momento solene em que comemoramos<br />

to<strong>do</strong>s juntos a irreversível vitória <strong>da</strong> Liber<strong>da</strong>de.<br />

Irreversível vitória <strong>da</strong> liber<strong>da</strong>de, repito!<br />

Irreversível porque seria ofensa grave a este povo alguém pensar<br />

um dia que poderíamos regressar às cavernas <strong>da</strong> demissão.

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