Discursos Racialistas em Pedro Calmon - 1922/33 - Programa de ...

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espanto, o espavorido susto de taciturna ave da noite solta de repente ao sol...” 107 . Mas havia um sentimento de débito, e por isso concordavam esses homens em se erguer a estátua. Cotcking perseguiu seu intento. A GAZETA DE NOTÍCIAS julgava o médico um “sonhador” - mesmo concordando que “a ninguém deve mais o Brasil do que ao negro, pois [foram] 389 anos de trabalhos consecutivos e imensos”. Afirmava Cotcking em seu discurso de comiseração que “o negro foi a coluna mestra da nossa evolução de povo”, referindo-se à obra dos escravos na lavoura, na mineração, no extrativismo, e também na configuração “psíquico e moral” da população submetida a um “caldeamento que ainda se não concluiu”, e que atingia os brasileiros desde o berço, ainda inconscientes, quando se nutriam com “o leite sagrado das nossas mães pretas” 108 . Cotcking trazia através da gratidão o questionamento da dívida moral: “uma vez no Brasil, que reservávamos ao negro?”. E desfilava uma lista de penúrias e sacrifícios em prol do desenvolvimento brasileiro. “Há quem possa esquecer a figura de Henrique Dias, à frente dos seus falangiários na repulsa ao batavo?”. Questionava o doutor, sedimentando uma idéia de débito da nação brasileira diante dos escravos africanos e seus descendentes: “somos devedores ao «homo afer» [africano] de uma dívida enorme que só poderemos resgatar até certo ponto elevando-lhe na praça pública um monumento grandioso.” A estátua era a solução apresentada por Cotcking para resolver ao menos grande parte da questão 109 . O monumento público saldaria a “dívida enorme” ao simbolizar a imensa gratidão da nação brasileira para a contribuição do negro na formação de nossa nacionalidade. Esta também foi a motivação de Cândido Campos, poucos anos depois – o monumento saldaria 107 CALMON, Pedro. “Mãe Preta”. In: GAZETA DE NOTÍCIAS (RJ), 13 abr 1926. 108 GAZETA DE NOTÍCIAS (RJ), 5 out 1923. 109 Loc. cit. 53
a “grande dívida de gratidão à raça magnífica”, como declarou aO CLARIM D’ALVORADA. Pedro Calmon era da mesma opinião: “Santificaste os míseros...” é o grito do escravo, que no poema chora a mãe, morta de dor. Que se escreva também na base daquele monumento este clamor – pérola que espuma fervilhante rolou da “Cachoeira de Paulo Afonso”. E teremos satisfeito a remota dívida. 110 A “dívida” declarada com o reconhecimento do contributo dos africanos na construção do país, nasceu estimulada pelas reivindicações dos negros, que se tornavam cada vez mais sistemáticas e organizadas, na exigência de uma inserção real na sociedade brasileira 111 . Mas a estátua proposta poderia também significar a lembrança de tempos mais favoráveis aos aristocratas. Memórias doces, como eram para Pedro Calmon. Para o autor, o culto à Mãe Preta fazia “recordar também o lar feliz e florido de outrora, a velha sociedade, os costumes que já lá vão, a tormentada história da formação nacional...” 112 . 1.5. NEGRO – HOMEM QUE NÃO É BRANCO POR TER NASCIDO PRETO 113 Ainda que a idéia da estátua para a Mãe Preta fosse vista com bons olhos pelos descendentes de escravos, o seu levantamento não constava na agenda do dia. Os descendentes de escravos clamavam pela cidadania verdadeira, e não por monumentos em praças públicas. Para além dos versos de Castro Alves evocados por Pedro Calmon, os 110 CALMON, Pedro. “Mãe Preta”. In: GAZETA DE NOTÍCIAS (RJ), 13 abr 1926. 111 Ver: FERRARA, Mirim Nicolau. A Imprensa Negra Paulista (1915-1963). São Paulo: FFLCH/USP, 1986; AZEVEDO, Thales de. Os movimentos “negros” na Bahia. As Elites de Cor numa Cidade Brasileira. 2ª. ed. Salvador: Edufba: Egba, 1996; BACELAR, Jeferson. A Hierarquia das Raças: Negros e brancos em Salvador. Rio de Janeiro: Pallas, 2001; CUNHA, Olívia Gomes da. “1933: um ano em que fizemos contato”. In: REVISTA USP. São Paulo, n.28, 1995/6; GOMES, Tiago de Melo. “Negros Contando (e Fazendo) sua História: Alguns Significados da Trajetória da Companhia Negra de Revistas (1926)”. In: ESTUDOS AFRO-ASIÁTICOS. Rio de Janeiro, ano 23, nº 1, 2001. p. 53-83; BACELAR, Jeferson. “A frente negra brasileira”. In: AFRO-ÁSIA, n.17, Salvador, 1996. p.75-85; PETRÔNIO, José Domingues. “Negros de Almas Brancas? A Ideologia do Branqueamento no Interior da Comunidade Negra em São Paulo, 1915-1930”. In: ESTUDOS AFRO-ASIÁTICOS, Rio de Janeiro, ano 24, nº 3, 2002. p. 563-599; GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. “Notas sobre Raça, Cultura e Identidade na Imprensa Negra de São Paulo e Rio de Janeiro, 1925-1950”. In: AFRO-ÁSIA, Salvador, n.29/30, 2003. p 247-269. 112 CALMON, Pedro. “Mãe Preta”. In: GAZETA DE NOTÍCIAS (RJ), 13 abr 1926. 113 “Dicionário”. In: GETULINO (Campinas, SP), 09 set 1923. 54
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