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vantagens para tirar partido <strong>de</strong> uma situação, mas também têm seu aspecto<br />
negativo, porque suscitam problemas que precisam ser superados. É como se,<br />
antigamente, tivéssemos sido moedas <strong>de</strong> países diversos; <strong>de</strong>rreteram-nas, e, agora,<br />
todas têm o mesmo cunho. Se se quiserem reconhecer as diferenças, então é<br />
preciso examinar cuidadosamente o metal. Somos soldados, e só <strong>de</strong>pois, e <strong>de</strong> uma<br />
maneira estranha, quase envergonhada, é que somos indivíduos.<br />
Há entre nós uma gran<strong>de</strong> fraternida<strong>de</strong>, algo do companheirismo das<br />
canções do povo, um pouco do sentimento <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong> dos prisioneiros e da<br />
<strong>de</strong>sesperada lealda<strong>de</strong> que existe entre os con<strong>de</strong>nados à morte ― tudo isto <strong>no</strong>s<br />
coloca num pla<strong>no</strong> <strong>de</strong> vida que, em meio ao perigo, <strong>no</strong>s permite superar a angústia<br />
e o medo <strong>de</strong> morrer. Faz com que procuremos gozar com sofreguidão as horas <strong>de</strong><br />
vida que ainda <strong>no</strong>s restam, <strong>de</strong> um modo que nada tem <strong>de</strong> patético. Se quiséssemos<br />
atribuir-lhe um valor, numa classificação, teríamos <strong>de</strong> dizer que é ao mesmo<br />
tempo heróico e banal, mas quem per<strong>de</strong> tempo com isto?<br />
É por este motivo, por exemplo, que Tja<strong>de</strong>n, quando se anuncia um ataque<br />
inimigo, toma a sua sopa <strong>de</strong> ervilha com toucinho, com uma pressa incrível, até a<br />
última colherada, porque não sabe se ainda estará vivo daqui a uma hora.<br />
Temos discutido <strong>de</strong>moradamente se ele tem razão: Kat o critica, alegando<br />
que é preciso contar com a eventualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um tiro na barriga, o que é muito<br />
mais perigoso com o estômago cheio.<br />
Estes são os <strong>no</strong>ssos problemas: para nós, têm gran<strong>de</strong> importância, como<br />
não po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser. A vida, aqui nas <strong>front</strong>eiras da morte, assume um<br />
aspecto <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> simplicida<strong>de</strong>, limita-se ao essencial, ao que é estritamente<br />
necessário; todo o resto é envolvido por um so<strong>no</strong> profundo.<br />
É qualquer coisa <strong>de</strong> primitivo e é <strong>no</strong>ssa salvação. Se houvesse maiores<br />
diferenças entre nós, estaríamos loucos ou mortos, ou então já teríamos <strong>de</strong>sertado<br />
há muito tempo. É como uma expedição ao pólo: toda manifestação <strong>de</strong> vida <strong>de</strong>ve<br />
servir, apenas, como sustentáculo da existência, <strong>de</strong>ve ser orientada<br />
exclusivamente neste sentido.<br />
Tudo mais é proibido, porque <strong>de</strong>sperdiça forças inutilmente. É a única<br />
maneira <strong>de</strong> <strong>no</strong>s salvarmos. Muitas vezes, vejo-me diante <strong>de</strong> mim mesmo como<br />
diante <strong>de</strong> um estranho, quando encontro o reflexo enigmático do passado, nas<br />
horas tranqüilas, como um espelho embaçado, que revela o perfil <strong>de</strong> minha vida<br />
atual. Então, admiro-me <strong>de</strong> como esta ativida<strong>de</strong> inexplicável, que se chama Vida,<br />
adaptou-se mesmo a tais formas. A vida é simplesmente uma constante vigília<br />
contra as ameaças da morte; fez <strong>de</strong> nós animais, para dar-<strong>no</strong>s a arma terrível que é<br />
o instinto; embotou <strong>no</strong>ssa sensibilida<strong>de</strong>, para que não <strong>no</strong>s aniquilássemos diante<br />
do horror que se apo<strong>de</strong>raria <strong>de</strong> nós, se tivéssemos o pensamento claro e<br />
consciente. Despertou em nós o sentimento <strong>de</strong> companheirismo, para que<br />
pudéssemos escapar ao espectro da solidão; emprestou-<strong>no</strong>s a indiferença dos<br />
selvagens, a fim <strong>de</strong> que, apesar <strong>de</strong> tudo, sentíssemos <strong>de</strong> cada momento o positivo<br />
e o armazenássemos contra o ataque do <strong>Nada</strong>.