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― Por que você continua a viver, se ele está morto?<br />
Cobre-me <strong>de</strong> lágrimas e indaga:<br />
― De mais a mais, por que vocês estão lá, crianças como vocês? ― E cai<br />
numa ca<strong>de</strong>ira, chorando.<br />
― Você o viu? Chegou a vê-lo? Como é que ele morreu?<br />
Digo-lhe que levou um tiro <strong>no</strong> coração e teve morte instantânea. Ela me<br />
olha e duvida <strong>de</strong> minhas palavras:<br />
― Está mentindo. Sei que não foi assim. Sinto que ele morreu sofrendo.<br />
Ouvi sua voz à <strong>no</strong>ite, senti o seu medo... diga-me a verda<strong>de</strong>, quero saber, preciso<br />
saber!<br />
― Não ― repito. ― Eu estava a seu lado. Morreu na hora.<br />
Implora, mansamente:<br />
― Conte-me. Você tem <strong>de</strong> me contar. Sei que quer me consolar, mas não<br />
vê que me tortura mais assim do que se me dissesse a verda<strong>de</strong>? Não consigo<br />
suportar essa incerteza; digame como foi, mesmo sendo terrível. É sempre melhor<br />
do que aquilo que se imagina, quando não se sabe ao certo.<br />
Não direi nunca, antes po<strong>de</strong>ria cortar-me em pedaços. Sinto pena <strong>de</strong>la, mas<br />
também me parece um pouco tola. Por que se preocupa com isto? Kemmerich vai<br />
continuar morto, quer ela saiba ou não como morreu. Quando já se viram tantos<br />
mortos, não se consegue compreen<strong>de</strong>r a razão <strong>de</strong> tanto sofrimento por causa <strong>de</strong><br />
um único indivíduo. Assim, digolhe com certa impaciência:<br />
― Morreu logo. Não sentiu nada. Seu rosto estava sere<strong>no</strong>. Ela silencia.<br />
Depois pergunta, lentamente: ― Você jura?<br />
― Sim.<br />
― Por tudo que lhe é mais sagrado?<br />
Meu Deus, que será ainda sagrado para mim? Essas coisas mudam tão<br />
<strong>de</strong>pressa para nós.<br />
― Sim, morreu imediatamente.<br />
― Você jura que você mesmo não quer mais voltar, se não for verda<strong>de</strong>?<br />
― Que eu nunca mais volte, se ele não morreu logo.<br />
Faria ainda qualquer outro juramento. Mas ela parece acreditar em mim.<br />
Fica gemendo e chorando durante muito tempo. Quer que lhe conte como foi, e<br />
invento uma história em que até eu quase acabo acreditando.<br />
Quando <strong>no</strong>s <strong>de</strong>spedimos, ela me beija e me dá <strong>de</strong> presente o retrato <strong>de</strong>le.<br />
No retrato, está apoiado, com sua farda <strong>de</strong> recruta, em uma mesa redonda, cujos<br />
pés são feitos <strong>de</strong> tronco <strong>de</strong> bétula. Lá atrás, como cenário, há uma floresta pintada.<br />
Na mesa, um caneco <strong>de</strong> cerveja.<br />
É a última <strong>no</strong>ite que passo em casa. Estamos todos calados. Vou cedo para<br />
a cama, agarro o travesseiro, aperto-o contra mim e enterro a cabeça nele. Quem<br />
sabe se eu jamais voltarei a <strong>de</strong>itar-me numa cama macia?