You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
a mim. Rapidamente, <strong>de</strong>ixo-me cair. Dez passos à frente está Kat com o ganso<br />
<strong>de</strong>baixo do braço. Logo que me vê, <strong>de</strong>satamos a correr.<br />
Finalmente, po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>scansar: o ganso está morto. Kat cuidou disto num<br />
instante. Queremos assá-lo logo, para ninguém dar pela coisa. Apanho uma panela<br />
e lenha da barraca e arrastamo-<strong>no</strong>s para um peque<strong>no</strong> alpendre abandonado, que<br />
utilizamos para estes fins.<br />
Calafetamos bem a única janela existente. Há uma espécie <strong>de</strong> lareira com<br />
chapa <strong>de</strong> ferro sobre tijolos. Acen<strong>de</strong>mos o fogo.<br />
Kat <strong>de</strong>pena e prepara o ganso. Colocamos as penas cuidadosamente <strong>de</strong><br />
lado. Com elas, preten<strong>de</strong>mos fazer peque<strong>no</strong>s travesseiros com os dizeres:<br />
“Descansem em paz sob o bombar<strong>de</strong>io”.<br />
Os tiros <strong>de</strong> artilharia da linha <strong>de</strong> frente zunem por cima do <strong>no</strong>sso<br />
escon<strong>de</strong>rijo. O clarão do fogo ilumina <strong>no</strong>ssos rostos; sombras dançam nas<br />
pare<strong>de</strong>s. Às vezes, ouve-se um estampido surdo, e a casinhola estremece. São<br />
bombas aéreas lançadas por aviões. Ouvimos gritos abafados, <strong>de</strong> uma vez.<br />
Provavelmente acertaram numa barraca.<br />
Os aviões roncam; o matraquear das metralhadoras aumenta. Mas aqui do<br />
<strong>no</strong>sso abrigo não escapa nenhuma luz que possa servir <strong>de</strong> alvo.<br />
Estamos sentados um em frente ao outro, Kat e eu, dois soldados <strong>de</strong> fardas<br />
surradas que assam um ganso <strong>no</strong> meio da <strong>no</strong>ite. Não falamos muito, mas estamos<br />
cheios <strong>de</strong> uma terna consi<strong>de</strong>ração recíproca que, me parece, po<strong>de</strong>ria ser a dos<br />
namorados. Somos dois seres huma<strong>no</strong>s, duas minúsculas centelhas <strong>de</strong> vida; lá<br />
fora, estão a <strong>no</strong>ite e o círculo da morte. Estamos sentados <strong>no</strong> seu limiar, em perigo<br />
e, ao mesmo tempo, protegidos; das <strong>no</strong>ssas mãos escorre gordura, <strong>no</strong>ssos<br />
corações estão juntos, e a hora que vivemos, como este lugar, está iluminada por<br />
um foco suave que faz dançarem as luzes e as sombras dos sentimentos. Que sabe<br />
ele <strong>de</strong> mim... e que sei eu <strong>de</strong>le? Ontem, nenhum <strong>de</strong> <strong>no</strong>ssos pensamentos tinha<br />
qualquer ponto em comum... agora, estamos aqui, sentados diante <strong>de</strong> um ganso,<br />
sentindo-<strong>no</strong>s como um único ser, e tão próximos um do outro que nem queremos<br />
falar.<br />
Assar um ganso <strong>de</strong>mora muito, mesmo quando é <strong><strong>no</strong>vo</strong> e gordo. Por isto,<br />
revezamo-<strong>no</strong>s. Um <strong>de</strong> nós rega-o <strong>de</strong> gordura, enquanto o outro dorme. Um aroma<br />
celeste vai, aos poucos, espalhando-se pelo alpendre.<br />
Os ruídos exter<strong>no</strong>s aumentam, formando uma espécie <strong>de</strong> sonho, <strong>no</strong> qual<br />
não se per<strong>de</strong> <strong>de</strong> todo a memória. Numa semi-inconsciência, vejo Kat levantar e<br />
baixar a colher. Gosto <strong>de</strong>ste sujeito, chego a amar seus ombros, sua silhueta<br />
angulosa e curvada... Ao mesmo tempo, vejo por trás <strong>de</strong>le florestas e estrelas, e<br />
uma voz boa me diz palavras que me tranqüilizam, a mim, um soldado peque<strong>no</strong>,<br />
sob o céu muito alto; um soldado que segue o seu caminho, com suas gran<strong>de</strong>s<br />
botas, o seu cinturão e sua mochila, que esquece <strong>de</strong>pressa, e raras vezes fica triste;<br />
que avança sempre sob o gran<strong>de</strong> céu da <strong>no</strong>ite.<br />
Um peque<strong>no</strong> soldado e uma boa voz; se alguém o acariciasse, talvez já não