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uços e não consegue mais virar-se. Não há outra explicação para o fato <strong>de</strong> não o<br />
acharmos, pois somente quando se grita com a boca colada ao chão é difícil<br />
<strong>de</strong>terminar a direção do grito.<br />
Deve ter levado um mau tiro, um <strong>de</strong>sses ferimentos traiçoeiros, que não são<br />
tão graves a ponto <strong>de</strong> enfraquecer o corpo com rapi<strong>de</strong>z e <strong>de</strong>ixá-lo entorpecido, e<br />
nem tão leves que permitam suportar as dores com a esperança <strong>de</strong> ficar curado.<br />
Kat diz que <strong>de</strong>ve ser um esmagamento da bacia ou um tiro na espinha.<br />
Provavelmente, o peito não está ferido, pois, se assim fosse, não teria forças para<br />
gritar tanto. E se estivesse ferido em outro lugar qualquer veríamos seus<br />
movimentos.<br />
Aos poucos, ele vai enrouquecendo. A voz tem um som tão débil que não<br />
se consegue distinguir <strong>de</strong> on<strong>de</strong> vem. Na primeira <strong>no</strong>ite, alguns dos <strong>no</strong>ssos homens<br />
saíram três vezes para procurá-lo. Mas quando julgaram tê-lo localizado e já<br />
começavam a arrastar-se até lá, na próxima vez em que o escutaram, a voz parecia<br />
vir <strong>de</strong> outro lugar.<br />
Procuramos em vão até o amanhecer. Durante o dia, o campo é vasculhado<br />
com o auxílio <strong>de</strong> um binóculo, mas nada se <strong>de</strong>scobre. No segundo dia, a voz fica<br />
mais fraca e sente-se que os lábios e a boca ressecaram.<br />
Nosso comandante <strong>de</strong> companhia prometeu priorida<strong>de</strong> <strong>de</strong> licença e mais<br />
três dias suplementares a quem o encontrasse. É um prêmio estimulante, mas<br />
faríamos o possível, mesmo sem ele, pois é um clamor terrível. À tar<strong>de</strong>, Kat e<br />
Kropp saem uma vez mais da trincheira. Em conseqüência disto o lóbulo da<br />
orelha <strong>de</strong> Albert é arrancado por um tiro. E foi tudo inútil ― voltaram sem ele!<br />
Apesar <strong>de</strong> tudo, compreen<strong>de</strong>-se claramente o que diz. No princípio, gritava<br />
somente por ajuda; na segunda <strong>no</strong>ite, <strong>de</strong>ve ter tido febre, pois, em seu <strong>de</strong>lírio,<br />
falava com a mulher e os filhos; muitas vezes escutamos o <strong>no</strong>me Elisa. Hoje,<br />
chora, apenas. À <strong>no</strong>ite, a voz diminui, até tomar-se um gemido rouco. Mas ainda<br />
continua durante toda a <strong>no</strong>ite. Ouvimos tudo claramente, porque o vento sopra na<br />
direção <strong>de</strong> <strong>no</strong>ssas trincheiras. De manhã, quando julgávamos que tudo já tivesse<br />
terminado, ainda chega até nós um estertor.<br />
Os dias são quentes, e os mortos jazem <strong>de</strong>senterrados. Não po<strong>de</strong>mos ir<br />
buscar todos, não saberíamos para on<strong>de</strong> ir com eles.<br />
Não precisamos, porém, <strong>no</strong>s preocupar: são enterrados pelas granadas.<br />
Alguns têm as barrigas inchadas como balões, assobiam, arrotam e mexem-se.<br />
São os gases que se agitam neles.<br />
O céu está azul e sem nuvens. As <strong>no</strong>ites são sufocantes, e o calor sobe da<br />
terra. Quando o vento sopra na <strong>no</strong>ssa direção, traz o vapor <strong>de</strong> sangue, que é<br />
pesado e <strong>de</strong> um doce repugnante; esta exalação mortal das trincheiras parece uma<br />
mistura <strong>de</strong> clorofórmio e <strong>de</strong> podridão, que <strong>no</strong>s causa malestar e vômitos.<br />
As <strong>no</strong>ites são calmas, e começa a caça às anilhas <strong>de</strong> cobre das granadas e<br />
aos pára-quedas <strong>de</strong> seda dos foguetes lumi<strong>no</strong>sos franceses. Ninguém sabe ao certo