CUNHA, Cileide Alves. Aval do passado - Pós-Graduação em ...
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que, para além disso, há uma “lógica” no discurso mítico, porque “os mecanismos<br />
combinatórios da imaginação coletiva parec<strong>em</strong> não ter à sua disposição senão um<br />
número relativamente limita<strong>do</strong> de fórmulas”. Essa lógica é uma sucessão ou uma<br />
combinação de imagens:<br />
o t<strong>em</strong>a <strong>do</strong> salva<strong>do</strong>r, <strong>do</strong> chefe providencial estará s<strong>em</strong>pre associa<strong>do</strong> a símbolos de purificação;<br />
o herói que liberta, corta os grilhões, aniquila os monstros, faz recuar as forças más. S<strong>em</strong>pre<br />
associa<strong>do</strong> também a imagens de luz – o ouro, o sol ascendente, o brilho <strong>do</strong> olhar – e a imagens<br />
de verticalidade – o gládio, o cetro, a árvore centenária, a montanha sagrada. Do mesmo<br />
mo<strong>do</strong>, o t<strong>em</strong>a da conspiração maléfica s<strong>em</strong>pre se encontrará coloca<strong>do</strong> <strong>em</strong> referência a uma<br />
certa simbólica da mácula: o hom<strong>em</strong> <strong>do</strong> complô desabrocha na fetidez obscura. Confundi<strong>do</strong><br />
com os animais imun<strong>do</strong>s, rasteja e se insinua; viscoso ou tentacular, espalha o veneno e a<br />
infecção... (1987, p. 17)<br />
O processo de heroificação passa por algumas etapas: o t<strong>em</strong>po da espera e <strong>do</strong><br />
apelo, quan<strong>do</strong> se forma e se difunde a imag<strong>em</strong> de um salva<strong>do</strong>r deseja<strong>do</strong>; o t<strong>em</strong>po da<br />
presença, <strong>do</strong> salva<strong>do</strong>r enfim surgi<strong>do</strong>; e o t<strong>em</strong>po da l<strong>em</strong>brança, quan<strong>do</strong> a figura <strong>do</strong><br />
salva<strong>do</strong>r, lançada de novo no passa<strong>do</strong>, vai se modificar de acor<strong>do</strong> com as variações da<br />
m<strong>em</strong>ória (1987, p. 72).<br />
Girardet identifica quatro modelos <strong>do</strong> “hom<strong>em</strong> providencial, <strong>do</strong> chefe, <strong>do</strong><br />
salva<strong>do</strong>r” ou, resumin<strong>do</strong>, <strong>do</strong> “herói da normalidade”, o salva<strong>do</strong>r que resolve as crises de<br />
legitimidade ou de identidade de um povo. O primeiro modelo é Cincinnatus, general de<br />
antigas vitórias militares. Este t<strong>em</strong> a imag<strong>em</strong> legendária de um hom<strong>em</strong> velho, que já<br />
ocupou vários cargos, aposentou-se e é chama<strong>do</strong> <strong>em</strong> seu retiro para ajudar o povo <strong>em</strong><br />
angústia, com papel de “apaziguar, proteger, restaurar”. Ao herói Cincinnatus são<br />
atribuídas virtudes correspondentes ao termo latino gravitas, para designar autoridade<br />
política, como firmeza na provação, experiência, prudência, sangue-frio, comedimento e<br />
moderação.<br />
O oposto de gravitas é celeritas, cujo ex<strong>em</strong>plo é Alexandre: neste segun<strong>do</strong><br />
modelo de herói, não é a l<strong>em</strong>brança <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>, é a ação imediata, a aventura; este é o<br />
herói conquista<strong>do</strong>r. Nesse caso, “n<strong>em</strong> o cetro n<strong>em</strong> o símbolo da justiça real, mas a<br />
espada”, que Girardet associa à imag<strong>em</strong> legendária <strong>do</strong> jov<strong>em</strong> Napoleão. O terceiro<br />
modelo é o arquétipo de Sólon, o legisla<strong>do</strong>r. Os ex<strong>em</strong>plos desse modelo são Pétain<br />
(1940–1941) e de Gaulle (1958), homens prepara<strong>do</strong>s para estabelecer novas ordens<br />
depois de grandes mudanças, que apelam para a lição de grandes ancestrais para<br />
corresponder aos desafios <strong>do</strong> presente. Por fim, o arquétipo <strong>do</strong> profeta (Moisés), “o<br />
anuncia<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s t<strong>em</strong>pos por vir” e conduzi<strong>do</strong> por um “impulso sagra<strong>do</strong>” para “guiar seu<br />
povo ao caminho <strong>do</strong> futuro” (1987, p. 70–80).