O Primo Basílio - Unama
O Primo Basílio - Unama
O Primo Basílio - Unama
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
www.nead.unama.br<br />
aquela idéia no espírito, impassível, com uma obstinação espectral; punha-se<br />
instintivamente a acumular as justificações: não fora culpa sua. Não abrira os braços a<br />
<strong>Basílio</strong> voluntariamente!... Tinha sido uma fatalidade; fora o calor da hora, o<br />
crepúsculo, uma pontinha de vinho talvez... Estava doida, decerto. E repetia consigo<br />
as atenuações tradicionais: não era a primeira que enganara seu marido; e muitas era<br />
apenas por vício; ela fora por paixão... Quantas mulheres viviam num amor ilegítimo e<br />
eram ilustres, admiradas! Rainhas mesmo tinham amantes. E ele amava-a tanto!...<br />
Seria tão fiel, tão discreto! As suas palavras eram tão cativantes, os seus beijos tão<br />
estonteadores!... E enfim que lhe havia de fazer agora? Já agora!...<br />
E resolveu ir responder-lhe. Foi ao escritório. Logo ao entrar o seu olhar deu<br />
com a fotografia de Jorge — a cabeça de tamanho natural — no seu caixilho<br />
envernizado de preto. Uma comoção comprimiu-lhe o coração; ficou como tolhida —<br />
como uma pessoa encalmada de ter corrido, que entra na frieza de um subterrâneo;<br />
e examinava o seu cabelo frisado, a barba negra, a gravata de pontas, as duas<br />
espadas encruzadas que reluziam por cima. Se ele soubesse matava. Fez-se muito<br />
pálida. Olhava vagamente em redor o casaco de veludo de trabalho dependurado<br />
num prego; a manta em que ele embrulhava os pés dobrada a um lado; as grandes<br />
folhas de papel de desenho na outra mesa ao fundo, e o potezinho de tabaco, e a<br />
caixa das pistolas!... Matava-a decerto!<br />
Aquele quarto estava tão penetrado da personalidade de Jorge, que lhe<br />
parecia que ele ia voltar, entrar daí a bocado. Se ele viesse de repente!... Havia três<br />
dias que não recebia carta — e quando ela estivesse ali a escrever ao seu num<br />
momento o outro podia aparecer e apanhá-la!... Mas eram tolices, pensou. O vapor<br />
do Barreiro só chegava às cinco horas; e depois ele dizia na carta que ainda se<br />
demorava um mês, talvez mais...<br />
Sentou-se, escolheu uma folha de papel, começou a escrever na sua letra<br />
um pouco gorda:<br />
Meu adorado <strong>Basílio</strong>.<br />
Mas um terror importuno tolhia-a; sentia como um palpite de que ele vinha,<br />
Era melhor não se pôr a escrever, talvez!... Ergueu-se, foi à sala devagar, sentou-se<br />
no divã; e, como se o contato daquele largo sofá e o ardor das recordações que ele<br />
lhe trazia da véspera lhe tivesse dado a coragem das ações amorosas e culpadas,<br />
voltou muito decidida ao escritório, escreveu rapidamente:<br />
Não imaginas com que alegria recebi esta manhã a tua carta...<br />
A pena velha escrevia mal; molhou-a mais, e ao sacudi-la, como lhe tremia<br />
um pouco a mão, um borrão negro caiu no papel. Ficou toda contrariada; pareceulhe<br />
aquilo um mau agouro. Hesitou um momento — e coçando a cabeça, os<br />
cotovelos sobre a mesa, sentia Juliana varrer fora o patamar, cantarolando a Carta<br />
Adorada. Enfim, impaciente, rasgou a folha muitas vezes em pedacinhos miúdos —<br />
e atirou-os para um caixão de pau envernizado com duas argolas de metal, que<br />
estava ao canto junto à mesa, onde Jorge deitava os rascunhos velhos e os papéis<br />
inúteis; chamavam-lhe "o sarcófago"; Juliana decerto, descuidara-se de o esvaziar<br />
no lixo, porque transbordava de papelada:<br />
Escolheu outra folha, recomeçou:<br />
Meu adorado <strong>Basílio</strong>.<br />
Não imaginas como fiquei quando recebi tua carta, esta manhã, ao acordar.<br />
Cobri-a de beijos...<br />
Mas o reposteiro franziu-se numa prega mole, a voz de Juliana disse<br />
discretamente:<br />
119