O Primo Basílio - Unama
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www.nead.unama.br<br />
partidas, rangiam com estalidos melancólicos; a um dos cantos, numa cova que o<br />
uso cavara, dormia todo o dia um gato; e um dos lados da madeira queimada<br />
revelava que fora salvo de um incêndio. Sobre o sofá pendia a litografia do senhor<br />
D. Pedro IV. Entre as duas janelas havia uma cômoda alta; e em cima, entre um<br />
Santo Antônio e um cofre feito de búzios, um macaquinho empalhado, com olhos de<br />
vidro, equilibrava-se sobre um galho de árvore. Ao entrar via-se logo, junto da janela<br />
fronteira à porta, a uma mesa coberta de oleado, um dorso magro e curvado, e um<br />
barretinho de seda com uma borla arrebitada. Era do Sr. Gouveia, o escriturário!<br />
O ar abafado tinha um cheiro complexo, indefinido — em que se sentia a<br />
cavalariça, a graxa e o refogado. Havia sempre gente: grossas matronas de capote e<br />
lenço, face gordalhufa e buço; cocheiros com o cabelo acamado, muito lustroso de<br />
óleo, e blusa de riscadinho; pesados galegos cor de greda, de passadas retumbantes<br />
e formas lorpas; criadinhas de dentro, amareladas, de olheiras, sombrinha de cabo de<br />
osso, e as luvas de pelica com passagens nas pontas dos dedos.<br />
Defronte da sala abria-se um quarto que deitava para o saguão, por cuja<br />
portinha verde se viam às vezes desaparecer dorsos respeitáveis de proprietários,<br />
ou caudas espalhafatosas de vestidos suspeitos.<br />
Em certas ocasiões, aos sábados, juntavam-se cinco, seis pessoas; velhas<br />
falavam baixo, com gestos misteriosos; uma altercação mal-abafada roncava no<br />
patamar, de repente desatavam a chorar; e, impassível, o Sr. Gouveia escrevinhava<br />
os seus registos, arremessando para o lado jatos melancólicos de saliva.<br />
A tia Vitória, no entanto, com a sua touca de renda negra, um vestido roxo —<br />
ia, vinha, cochichava, gesticulava, fazia tilintar dinheiro, tirando a cada momento da<br />
algibeira rebuçados de avenca para o catarro.<br />
A tia Vitória era uma grande utilidade; tornara-se um centro! A criadagem<br />
reles, mesmo a criadagem fina, tinha ali para tudo o seu despacho. Emprestava<br />
dinheiro aos desempregados; guardava as economias dos poupados; fazia escrever<br />
pelo Sr Gouveia as correspondências amorosas ou domésticas dos que não tinham<br />
ido a escola; vendia vestidos em segunda mão; alugava casaca; aconselhava<br />
colocações, recebia confidências, dirigia intrigas, entendia de partos. Nenhum criado<br />
era inculcado por ela; mas, arranjados ou despedidos, nunca deixavam de subir,<br />
descer as escadas da tia Vitória. Tinha além disso muitas relações, infinitas<br />
condescendências; celibatários maduros iam entender-se com ela, para o<br />
confortozinho de uma sopeira gordita e nova; era ela quem inculcava as serventes<br />
às mulheres policiadas; sabia de certos agiotas discretos. E dizia-se: "a tia Vitória<br />
tem mais manhas que cabelos!"<br />
Mas, ultimamente, apesar dos seus afazeres, apenas Juliana entrava,<br />
levava-a para o quarto nas traseiras, fechava a porta, e havia para meia hora!<br />
E Juliana saia sempre vermelha, os olhos acesos, feliz! Voltava depressa<br />
para casa e mal entrava:<br />
— A senhora ainda não voltou, Sra. Joana?<br />
— Ainda não.<br />
— Está na Encarnação. Coitada! Não tem má cruz, ir aturar a velha! E<br />
depois naturalmente vai dar o seu passeio! Faz ela muito bem! Espairecer!<br />
Joana era decerto espessa e obtusa; além disso a paixão animal pelo<br />
rapazola emparvecia-a. Todavia, percebera que a Sra. Juliana andava muito<br />
derretida pela senhora; disse-lho mesmo um dia:<br />
— Vossemecê agora, Sra Juliana, parece mais na bola da senhora!<br />
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