O Primo Basílio - Unama
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www.nead.unama.br<br />
enrolando devagar nos dedos o fio de algodão grosso! Ali dormira com ele três anos:<br />
o seu lugar era de lá, do lado da parede... Fora naquela cama que ela estivera doente,<br />
com a pneumonia. Durante semanas ele não se deitara — a velá-la, a conchegar-lhe<br />
a roupa, a dando-lhe os caldos, os remédios, com toda a sorte de palavras doces que<br />
lhe faziam tão bem!... Falava-lhe como a criancinha pequena; dizia-lhe: "Isso vai<br />
passar, amanhã estás boa, vamos passear". Mas o seu olhar ansioso estava<br />
marejado de lágrimas! Ou então pedia-lhe: "Melhora, sim? Faze-me a vontade, minha<br />
querida, melhora!..." E ela queria tanto melhorar, que sentia como uma ligeira onda de<br />
vida que lhe voltava, lhe refrescava o sangue!<br />
Nos primeiros dias da convalescença era ele que a vestia; ajoelhava-se para<br />
lhe calçar os sapatos, embrulhava-a no roupão, vinha estendê-la na causeuse,<br />
sentava-se ao pé dela a ler-lhe romances, desenhar-lhe paisagens, recortar-lhe<br />
soldados de papel. E dependia toda dele; não tinha mais ninguém no mundo para a<br />
tratar, para sofrer, chorar por ela — senão ele! Adormecia sempre com as mãos nas<br />
suas, porque a doença deixara-lhe um vago medo dos pesadelos da febre; e o pobre<br />
Jorge, para a não acordar, ali ficava com a mão presa, horas, sem se mover.<br />
Deitava-se vestido num colchãozito ao pé dela. Muitas vezes, acordando de noite, o<br />
tinha visto a limpar as lágrimas; de alegria, decerto, porque ela então estava salva!<br />
O médico, o bom Dr. Caminha, tinha-o dito: "Está livre de perigo; agora é refazer<br />
esse corpinho". E Jorge, o pobre Jorge, coitado, sem dizer nada, tinha tomado as<br />
mãos do velho — tinha-as coberto de beijos!<br />
E agora, quando ele soubesse, quando ele voltasse! Quando ao entrar ali na<br />
alcova — visse os dois travesseirinhos, ainda! Ela iria longe, com outro, por<br />
caminhos estranhos, ouvindo outra língua. Que horror! E ele ali estaria, naquela<br />
casa só, chorando, abraçado a Sebastião. Quantas memórias dela para o torturar!<br />
Os seus vestidos, as suas chinelinhas, os seus pentes, toda a casa! Que vida triste,<br />
a dele! Dormiria ali só! Já não teria ninguém para o acordar de manhã com um<br />
beijinho, passar-lhe o braço pelo pescoço, dizer-lhe: "É tarde, Jorge!" Tudo acabará<br />
para ambos. Nunca mais! — Rompeu a chorar, de bruços sobre a cama...<br />
Mas a voz de Juliana falou alto no corredor com Joana. Ergueu-se aterrada.<br />
Viria ter com ela, aquela infame? Os passos achinelados afastaram-se devagar, e<br />
Joana entrou com o rol e com a lamparina.<br />
— A Sra. Juliana — disse — levantou-se um momento, mas diz que ainda<br />
está mal, coitada. Foi-se deitar. A senhora não precisa mais nada?<br />
— Não — disse da alcova.<br />
Despiu-se; e, prostrada, adormeceu profundamente.<br />
Juliana em cima não dormia. A dor passara-lhe — e agitava-se sobre o<br />
enxergão, "com o diabo da espertina"! Como tantas outras noites, nas últimas<br />
semanas. Porque desde que apanhara a carta no sarcófago vivia numa febre; mas a<br />
alegria era tão aguda, a esperança tão larga que a sustentavam, lhe davam saúde!<br />
Deus enfim tinha-se lembrado dela! Desde que <strong>Basílio</strong> começara a vir a casa, tivera<br />
logo um palpite, uma coisa que lhe dizia que tinha chegado enfim a sua vez! A<br />
primeira satisfação fora naquela noite em que achara, depois de <strong>Basílio</strong> sair às dez<br />
horas, a travessinha de Luísa caída ao pé do sofá. Mas que explosão de felicidade,<br />
quando, depois de tanta espionagem, de tanta canseira, apanhou enfim a carta no<br />
sarcófago! Correu ao sótão, leu-a avidamente, e quando viu a importância da "coisa"<br />
arrasaram-se-lhe os olhos de lágrimas; arremessou a sua alma perversa para as<br />
alturas, bradando em si, num triunfo:<br />
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