O Primo Basílio - Unama
O Primo Basílio - Unama
O Primo Basílio - Unama
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
www.nead.unama.br<br />
Lentamente, começou a tornar-se desconfiada, cortante como um nordeste;<br />
tinha respostadas, questões com as companheiras; não se havia de deixar pôr o pé<br />
no pescoço!<br />
As antipatias que a cercavam faziam-na assanhada, como um círculo de<br />
espingardas enraivece um lobo. Fez-se má; beliscava crianças até lhes enodoar a<br />
pele; e se lhe ralhavam, a sua cólera rompia em rajadas. Começou a ser despedida.<br />
Num só ano esteve em três casas. Saía com escândalo, aos gritos, atirando as<br />
portas, deixando as amas todas pálidas, todas nervosas...<br />
A inculcadeira, a sua velha amiga, a tia Vitória, disse-lhe:<br />
— Tu acabas por não ter onde te arrumar, e falta-te o bocado do pão!<br />
O pão! Aquela palavra que é o terror, o sonho, a dificuldade do pobre<br />
assustou-a. Era fina, e dominou-se. Começou a fazer-se "uma pobre mulher", com<br />
afetações de zelo, um ar de sofrer tudo, os olhos no chão. Mas roía-se por dentro;<br />
veio-lhe a inquietação nervosa dos músculos da face, o tique de franzir o nariz; a<br />
pele esverdeou-se-lhe de bílis.<br />
A necessidade de se constranger trouxe-lhe o hábito de odiar; odiou<br />
sobretudo as patroas, com um ódio irracional e pueril. Tivera-as ricas, com palacetes,<br />
e pobres, mulheres de empregados, velhas e raparigas, coléricas e pacientes; —<br />
odiava-a todas, sem diferença. É patroa e basta! Pela mais simples palavra, pelo ato<br />
mais trivial! Se as via sentadas: "Anda, refestela-te, que a moura trabalha!" Se as via<br />
sair: "Vai-te, a negra cá fica no buraco!" Cada riso delas era uma ofensa à sua tristeza<br />
doentia; cada vestido novo uma afronta ao seu velho vestido de merino tingido.<br />
Detestava-as na alegria dos filhos e nas prosperidades da casa. Rogava-lhes pragas.<br />
Se os amos tinham um dia de contrariedade, ou via as caras tristes, cantarolava todo<br />
o dia em voz de falsete a "Carta Adorada"! Com que gosto trazia a conta retardada de<br />
um credor impaciente, quando pressentia embaraços na casa! "Este papel!" — gritava<br />
com uma voz estridente — "diz que não se vai embora sem uma resposta!" Todos os<br />
lutos a deleitavam — e sob o xale preto, que lhe tinham comprado, tinha palpitações<br />
de regozijo. Tinha visto morrer criancinhas, e nem a aflição das mães a comovera;<br />
encolhia os ombros: "Vai dali, vai fazer outro. Cabras!"<br />
As boas palavras mesmo, as condescendências eram perdidas com ela,<br />
como gotas de água lançadas no fogo. Resumia as patroas na mesma palavra —<br />
uma récua! E detestava as boas pelos vexames que sofrera das más. A ama era<br />
para ela o inimigo, o tirano. Tinha visto morrer duas — e de cada vez sentira, sem<br />
saber por quê, um vago alívio, como se uma porção do vasto peso, que a sufocava<br />
na vida, se tivesse desprendido e evaporado!<br />
Sempre fora invejosa; com a idade aquele sentimento exagerou e de um<br />
modo áspero. Invejava tudo na casa: as sobremesas que os amos comiam, a roupa<br />
branca que vestiam. As noites de soirée, de teatro, exasperavam-na. Quando havia<br />
passeios projetados, se chovia de repente, que felicidade! O aspecto das senhoras<br />
vestidas e de chapéu, olhando por dentro da vidraça com um tédio infeliz, deliciavaa,<br />
fazia-a loquaz:<br />
— Ai, minha senhora! É um temporal desfeito! É a cântaros; está para todo o<br />
dia! Olha o ferro!<br />
E muito curiosa; era fácil encontrá-la, de repente, cosida por detrás de uma<br />
porta com a vassoura a prumo, o olhar aguçado. Qualquer carta que vinha era<br />
46