O Primo Basílio - Unama
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www.nead.unama.br<br />
À meia-noite a casa estava adormecida e apagada. Fora, o céu enegrecera<br />
mais; relampejou, e um trovão seco estalou, rolou.<br />
Luísa abriu os olhos estremunhada; começara a cair uma chuva grossa e<br />
sonora; a trovoada arrastava-se, ao longe. Esteve um momento escutando as goteiras<br />
que cantavam sobre o lajedo; a alcova abafava, descobriu-se; o sono tinha fugido, e<br />
de costas, o olhar fixo na vaga claridade que vinha de fora da lamparina, seguia o<br />
tique-taque do relógio. Espreguiçou-se, e uma certa idéia, uma certa visão foi-se<br />
formando no seu cérebro, completando-se tão nítida, quase tão visível, que se revirou<br />
na cama devagar, estirou os braços, lançou-os em roda do travesseiro, adiantando os<br />
beiços secos — para beijar uns cabelos negros onde reluziam fios brancos.<br />
Sebastião tinha dormido mal. Acordou às seis horas e desceu ao quintal em<br />
chinelas. Uma porta envidraçada da sala de jantar abria para um terraçozinho, largo<br />
apenas para três cadeiras de ferro pintado e alguns vasos de cravos; dali, quatro<br />
degraus de pedra desciam para o quintal; era uma horta ajardinada, muito cheia,<br />
com canteirinhos de flores, saladas muito regadas, pés de roseiras junto dos muros,<br />
um poço e um tanque debaixo de uma parreirita, e árvores; terminava por um outro<br />
terraço assombreado de uma tília, com um parapeito para uma rua baixa e solitária;<br />
defronte corria um muro de quintal muito caiado. Era um sitio recolhido, de uma paz<br />
aldeã. Muitas vezes Sebastião, de madrugada, ia para ali fumar o seu cigarro.<br />
Era uma manhã deliciosa. Havia um ar transparente e fino; o céu<br />
arredondava-se a uma grande altura com o azulado de certas porcelanas e, aqui e<br />
além, uma nuvenzinha algodoada, molemente enrolada, cor de leite; a folhagem<br />
tinha verde lavado a água do tanque uma cristalinidade fria; pássaros chilreavam de<br />
leve com vôos rápidos.<br />
Sebastião estava debruçado para a rua, quando a ponteira de uma bengala,<br />
passos vagarosos cortaram o silêncio fresco. Era um vizinho de Jorge, o Cunha<br />
Rosado, o doente de intestinos; arrastava-se, curvado, abafado num cachenê e num<br />
paletó cor de pinhão, com a barba grisalha desmazelada, a crescer.<br />
— Já a pé vizinho! — disse Sebastião.<br />
O outro parou, ergueu a cabeça lentamente.<br />
— Oh, Sebastião! — disse com uma voz plangente. — Ando a passear os<br />
meus leites, homem!<br />
— A pé?<br />
— Ao princípio ia na burrita até fora de portas, mas diz que me fazia bem o<br />
passeiozito a pé...<br />
Encolheu os ombros com um gesto triste de dúvida, de desconsolação.<br />
— E como vai isso? — perguntou Sebastião, muito debruçado para a rua,<br />
com afeto.<br />
O Cunha teve um sorriso desolado nos seus beiços brancos:<br />
— A desfazer-se!<br />
Sebastião tossiu, embaraçado, sem achar uma consolação.<br />
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