Lendas do mundo emerso - O destino de Adhara - Multi Download
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o espelho <strong>de</strong>sta situação.<br />
<strong>Adhara</strong> foi interrogada até não po<strong>de</strong>r mais.<br />
Pediram várias vezes que evocasse aquele dia, contan<strong>do</strong> o que tinha feito, o que havia ouvi<strong>do</strong>.<br />
Teve <strong>de</strong> reconstituir cada passo e ver-se com a total falta <strong>de</strong> emoções que experimentara naquele<br />
momento. Fora simplesmente uma questão <strong>de</strong> cumprir com o próprio <strong>de</strong>ver, <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar à solta<br />
comportamentos que já existiam nela havia muito tempo. Nascera para aquilo, uma voz terrível<br />
continuava murmuran<strong>do</strong> em seus ouvi<strong>do</strong>s, enquanto respondia às perguntas <strong>do</strong>s encarrega<strong>do</strong>s da<br />
investigação. E ninguém queren<strong>do</strong> saber daquela vida que ela ceifara, ninguém que a censurasse.<br />
Muito pelo contrário, no paço começava a ser vista como uma heroína. Quan<strong>do</strong> passava pelos<br />
corre<strong>do</strong>res, as criadas viravam-se olhan<strong>do</strong> para ela, os solda<strong>do</strong>s dirigiam-lhe olhares cheios <strong>de</strong><br />
admiração.<br />
Até Amina pensava <strong>de</strong>sse jeito.<br />
– Devo-lhe a vida, você foi fantástica. Vi como lutou, parecia estar dançan<strong>do</strong>! – E imitava seus<br />
movimentos precisos.<br />
Isso criava em <strong>Adhara</strong> uma sensação <strong>de</strong> fastio.<br />
– Não foi uma brinca<strong>de</strong>ira.<br />
– Claro que não, eu bem sei disso! Só quero dizer que você foi... simplesmente heroica!<br />
– Um garoto morreu.<br />
Amina arregalara os olhos.<br />
– Um garoto? Que nada, o sujeito queria matar-me!<br />
<strong>Adhara</strong> fora vê-lo na câmara mortuária para on<strong>de</strong> o haviam leva<strong>do</strong>. Por duas noites o vermelho<br />
<strong>do</strong> seu sangue no punhal <strong>de</strong>ixara-a obcecada tiran<strong>do</strong>-lhe o sono, até finalmente criar ânimo e<br />
conseguir limpar a arma. Esfregara convulsamente a lâmina, tanto assim que acabara cortan<strong>do</strong> um<br />
<strong>de</strong><strong>do</strong>. Em seguida fora vê-lo.<br />
Afastara o véu que o encobria, observan<strong>do</strong> o rosto quase disforme. Não saberia dizer com<br />
certeza a ida<strong>de</strong>, mas <strong>de</strong>via ser mais ou menos coetâneo <strong>de</strong>la. Tinha fica<strong>do</strong> parada, em<br />
contemplação, lembran<strong>do</strong> como por um momento, enquanto lutava, que aquele garoto nada mais<br />
se tornara para ela <strong>do</strong> que um corpo a ser feri<strong>do</strong>, golpea<strong>do</strong>, sangra<strong>do</strong>. E mesmo agora, na pali<strong>de</strong>z<br />
e no aban<strong>do</strong>no da morte, parecia-lhe simplesmente uma casca.<br />
Como é que a gente po<strong>de</strong> viver com uma coisa <strong>de</strong>ssas?<br />
Como é que po<strong>de</strong>mos nos per<strong>do</strong>ar quan<strong>do</strong> matamos?<br />
E como é que po<strong>de</strong>mos continuar a viver normalmente quan<strong>do</strong> sabemos que matamos sem<br />
qualquer hesitação, com a mais completa naturalida<strong>de</strong>?<br />
Teria gosta<strong>do</strong> <strong>de</strong> ter alguém ao seu la<strong>do</strong>. Mira, talvez, que muitas vezes soubera dizer-lhe a<br />
palavra certa na hora certa; Mira, um homem que, pensan<strong>do</strong> bem, mal conhecia, mas que <strong>de</strong><br />
alguma forma ficara em seu coração; um homem <strong>do</strong> qual subitamente sentia a falta, mais por<br />
aquilo que <strong>de</strong>le <strong>de</strong>sconhecia, e que ele não contara, <strong>do</strong> que pelo real relacionamento que os<br />
ligava. Mas o homem já não estava, <strong>de</strong>saparecera, sabe-se lá on<strong>de</strong>.<br />
Para on<strong>de</strong> vão os mortos?<br />
Apenas se dissolvem e <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> existir?