Lendas do mundo emerso - O destino de Adhara - Multi Download
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Mas, por mais que suasse, por mais energia que gastasse naquele exercício, e apesar da<br />
violenta <strong>do</strong>r física que aquele treinamento lhe provocava, o <strong>de</strong>sespero e o sentimento <strong>de</strong> culpa<br />
continuavam lá, intatos, a tirar-lhe o sono e a razão. Pois assim como acontecera da primeira vez,<br />
agora também se regozijara ao provocar sofrimento. Porque <strong>de</strong> novo, como sempre, <strong>de</strong>ixara-se<br />
seduzir pelo chama<strong>do</strong> <strong>do</strong> sangue e da morte.<br />
Está com seis anos. Contaram para ele. Finalmente disseram. Pai morto heroicamente em<br />
combate coisíssima nenhuma. A mãe mentiu durante aqueles anos to<strong>do</strong>s. Não passa <strong>de</strong> um<br />
bastar<strong>do</strong>. Filho <strong>de</strong> ninguém. E a mãe é uma puta. É o que diz o menino diante <strong>de</strong>le.<br />
– A sua mãe não passa <strong>de</strong> uma puta! – E a garotada em volta ri.<br />
Acha que o mun<strong>do</strong> vai <strong>de</strong>smoronar em cima <strong>de</strong>le, que a realida<strong>de</strong> se <strong>de</strong>sfaz diante <strong>do</strong>s seus<br />
olhos. As lágrimas ofuscam-lhe a vista, as risadas <strong>do</strong>s garotos fazem o sangue pulsar nas suas<br />
têmporas.<br />
E então pula adiante aos berros. Investe contra aquele garoto bem maior <strong>do</strong> que ele e <strong>de</strong>ixa<br />
a fúria escorrer pelas veias até se satisfazer. Dá pontapés, esbraveja, mor<strong>de</strong>, arranha. Sentese<br />
como um animal, e é assim mesmo que age. E se no começo parecia um anão lutan<strong>do</strong> com<br />
um gigante, pouco a pouco, sabe-se lá <strong>de</strong> on<strong>de</strong>, a força aparece. Os outros procuram arrancálo<br />
<strong>de</strong> cima da sua vítima, mas não conseguem. Está levan<strong>do</strong> a melhor. Ouve o inimigo gemer<br />
sob os seus golpes. Em seguida, pela primeira vez na vida, dá-se conta <strong>de</strong>la, percebe-a<br />
claramente. Uma satisfação surda, compensa<strong>do</strong>ra. O cheiro <strong>do</strong> sangue, o seu sabor, e aquela<br />
consciência obscura e inebriante. Está fazen<strong>do</strong> mal, está infligin<strong>do</strong> <strong>do</strong>r. E a coisa o excita.<br />
Não tem nada a ver com a revelação que acabaram <strong>de</strong> lhe fazer, não tem nada a ver com o<br />
<strong>de</strong>sprezo e o escárnio com que foi trata<strong>do</strong>. E <strong>de</strong>ixa-se levar por aquele <strong>de</strong>sejo, por aquele<br />
abismo aconchegante.<br />
Retoma a consciência <strong>de</strong> si mesmo quan<strong>do</strong> um adulto o segura e o tira <strong>de</strong> cima <strong>do</strong><br />
adversário.<br />
– O que <strong>de</strong>u em você? Ficou louco?<br />
A realida<strong>de</strong> volta a correr na velocida<strong>de</strong> normal. No chão, o outro menino não se mexe. O<br />
rosto intumesci<strong>do</strong>, os braços abertos em cruz, páli<strong>do</strong>s sob to<strong>do</strong> aquele sangue. O coração<br />
martela em seu peito, ele mal consegue respirar, <strong>de</strong> tão ofegante.<br />
Finalmente chega o sentimento <strong>de</strong> culpa, o horror. E então ele chora. O adulto diz alguma<br />
coisa que ele não enten<strong>de</strong>. Está assusta<strong>do</strong>, com me<strong>do</strong> daquilo que fez, e ainda mais daquilo<br />
que experimentou.<br />
Naquela mesma noite, sozinho em casa, sai nu pelo bosque, no frio. Porque <strong>de</strong>ste jeito o<br />
<strong>de</strong>sespero se abranda, pois assim o sentimento <strong>de</strong> culpa parece apertar menos seu coração.<br />
Quan<strong>do</strong> a jovem acor<strong>do</strong>u, o sol já brilhava alto no céu. Por um momento teve a impressão <strong>de</strong><br />
estar novamente no grama<strong>do</strong> on<strong>de</strong> nascera, como se tu<strong>do</strong> aquilo que acontecera daquele momento<br />
em diante não tivesse passa<strong>do</strong> <strong>de</strong> um sonho. Então lembrou-se <strong>do</strong> solda<strong>do</strong> que, na noite anterior,<br />
a salvara, e pouco a pouco tu<strong>do</strong> voltou ao <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> lugar. Paulatinamente, na luz difusa, foram se<br />
<strong>de</strong>senhan<strong>do</strong> os contornos <strong>de</strong> um pequeno quarto <strong>de</strong> pare<strong>de</strong>s <strong>de</strong> pedra, com o teto sustenta<strong>do</strong> por<br />
gran<strong>de</strong>s vigas <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira. Num canto havia uma mesa, ao la<strong>do</strong> um saco <strong>de</strong> viagem. Na pare<strong>de</strong> em<br />
frente abria-se uma bonita janela ogival, pela qual o sol entrava com violência. A jovem se<br />
levantou protegen<strong>do</strong> os olhos com a mão. Lá fora avistava-se uma parte da imensa planície,