Lendas do mundo emerso - O destino de Adhara - Multi Download
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A sua porta se abriu na calada da noite. Amhal estava <strong>de</strong>ita<strong>do</strong> na cama, completamente vesti<strong>do</strong>.<br />
Não <strong>do</strong>rmia. Nem conseguia lembrar havia quanto tempo não tinha uma boa noite <strong>de</strong> sono.<br />
Embora, <strong>de</strong>pois <strong>do</strong> treinamento, sempre estivesse esgota<strong>do</strong>, quan<strong>do</strong> apoiava a cabeça no<br />
travesseiro o sono sumia. As pare<strong>de</strong>s <strong>do</strong> quarto fechavam-se sobre ele como as tábuas <strong>de</strong> um<br />
caixão, e o colchão parecia querer engoli-lo, envolven<strong>do</strong>-o no sudário <strong>do</strong>s lençóis. Fechava os<br />
olhos, mas a sua mente enchia-se <strong>de</strong> uma só imagem: Mira morto. O corpo <strong>do</strong> mestre, um<br />
receptáculo vazio que já não tinha mais nada <strong>do</strong> homem que ele amara como a um pai.<br />
Havia passa<strong>do</strong> longas horas ao la<strong>do</strong> <strong>do</strong> cadáver, horas em que a sua mente não parava <strong>de</strong> fazer<br />
a mesma obcecada pergunta: por quê? Não conseguia pensar em outra coisa, enquanto seus olhos<br />
gravavam to<strong>do</strong>s os <strong>de</strong>talhes daquele corpo. A moleza <strong>do</strong> aban<strong>do</strong>no, a pali<strong>de</strong>z <strong>de</strong>snatural, o<br />
relaxamento mortal <strong>do</strong>s traços. E, pouco a pouco, Amhal viu Mira esmaecer, quase se esvair<br />
diante <strong>do</strong>s seus olhos, até ter a terrível certeza <strong>de</strong> que o mestre já não existia, em lugar nenhum,<br />
simplesmente <strong>de</strong>saparecera.<br />
E agora, toda noite, aquele corpo voltava a visitá-lo tiran<strong>do</strong>-lhe o sono, como se <strong>de</strong> todas as<br />
lembranças <strong>do</strong>s anos passa<strong>do</strong>s com ele nada mais sobrasse <strong>do</strong> que a imagem daquele cadáver.<br />
Já nem tentava mais <strong>do</strong>rmir. Só umas poucas horas agitadas, com a <strong>do</strong>r que logo voltava a<br />
oprimir-lhe o peito <strong>de</strong>spertan<strong>do</strong>-o por completo.<br />
Quan<strong>do</strong> a porta rangeu, Amhal nem se mexeu. Quem quer que fosse, não fazia diferença. Um<br />
inimigo, um amigo, mais um idiota que tentava tirá-lo <strong>de</strong> sua prostração. Que entrassem, à<br />
vonta<strong>de</strong>. O muro da sua indiferença não tinha si<strong>do</strong> arranha<strong>do</strong> nem mesmo por <strong>Adhara</strong>.<br />
O barulho <strong>de</strong> botas, o arrastar <strong>de</strong> uma ca<strong>de</strong>ira. Alguém que se sentava. E o silêncio.<br />
Amhal ficou <strong>de</strong> olhos abertos no escuro <strong>do</strong> quarto. A lua jogava uma luz mortiça no muro <strong>de</strong><br />
tijolos diante <strong>de</strong>le.<br />
– Eu tinha <strong>do</strong>ze anos, quan<strong>do</strong> ele morreu.<br />
Era San. O coração <strong>de</strong> Amhal teve um leve estremecimento, que, porém, não bastou para<br />
sacudi-lo. Mais palavras <strong>de</strong> conforto, que só conseguiriam fazer com que se sentisse pior.<br />
– Não havíamos passa<strong>do</strong> muito tempo juntos. Só uns <strong>do</strong>is ou três meses, pensan<strong>do</strong> bem. Mas<br />
foram os meses mais intensos da minha vida. As coisas que me ensinou, muito mais acerca da<br />
existência <strong>do</strong> que sobre a própria espada, ficaram profundamente gravadas no meu coração, e<br />
ninguém jamais po<strong>de</strong>rá apagá-las. E por isso, quan<strong>do</strong> I<strong>do</strong> morreu, uma parte <strong>de</strong> mim morreu com<br />
ele.<br />
Uma lágrima solitária queimou o perfil da face <strong>de</strong> Amhal.<br />
Ele me enten<strong>de</strong>, ele sabe o que estou sentin<strong>do</strong> agora, murmurava em seus ouvi<strong>do</strong>s uma voz<br />
<strong>de</strong>sesperada.<br />
– E morreu por minha culpa, está enten<strong>de</strong>n<strong>do</strong>? Protegera-me durante aquele tempo to<strong>do</strong>, para<br />
evitar que a Guilda <strong>do</strong>s Assassinos me pegasse e usasse o meu corpo para ressuscitar Aster. Mas<br />
eu era um garoto jactancioso e acreditava ter bastante força para <strong>de</strong>rrotar a seita. Sentia o po<strong>de</strong>r<br />
da magia correr em minhas veias, queimar-me por <strong>de</strong>ntro, e tinha certeza <strong>de</strong> que, in<strong>do</strong> ao templo,<br />
enfrentan<strong>do</strong> a Guilda em seu covil, po<strong>de</strong>ria matar a eles to<strong>do</strong>s e vingar os meus pais, mortos por<br />
aqueles loucos fanáticos.<br />
Uma longa pausa.