Lendas do mundo emerso - O destino de Adhara - Multi Download
Lendas do mundo emerso - O destino de Adhara - Multi Download
Lendas do mundo emerso - O destino de Adhara - Multi Download
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
– Você não é nada disso e nunca será. Aquele homem tem uma péssima influência sobre você,<br />
será que não percebe? Você mu<strong>do</strong>u muito nestas últimas semanas, quase parece que se ren<strong>de</strong>u,<br />
que não quer mais lutar contra a fúria que se aninha no seu peito.<br />
– Não há coisa alguma contra a qual lutar – replicou ele, frio. – Eu sou aquela fúria. É o<br />
primeiro sentimento <strong>de</strong> que tenho lembrança, é a constante da minha vida. Tu<strong>do</strong> o mais se<br />
transforma, se modifica, mas ela fica lá, imutável. Eu estou fada<strong>do</strong> a este lugar, e a minha espada<br />
está fadada a matar, a chacinar. É a única coisa que eu sei fazer.<br />
– Mas será que não se dá conta <strong>do</strong> que está dizen<strong>do</strong>? Era isso o que Mira <strong>de</strong>sejava, era isso<br />
que ele queria <strong>de</strong> você?<br />
Um momentâneo brilho pareceu acen<strong>de</strong>r-se nos olhos <strong>de</strong> Amhal. Apertou os lábios.<br />
– Saia daqui. Vá <strong>do</strong>rmir e <strong>de</strong>ixe-me em paz! – Em seguida <strong>de</strong>svencilhou-se e <strong>de</strong>sapareceu na<br />
tenda.<br />
<strong>Adhara</strong> passou a noite sem <strong>do</strong>rmir. Sentia-se impotente. Ficou imaginan<strong>do</strong> se não seria melhor<br />
voltar <strong>de</strong> vez para casa, para o palácio. Mas ainda havia alguma coisa que a retinha ali.<br />
E então, na manhã seguinte, envolveu os cabelos num lenço, para escon<strong>de</strong>r seus cachos azuis e<br />
evitar que a multidão, <strong>de</strong>sesperada, a atacasse <strong>de</strong> novo. Depois <strong>de</strong> pintar na pele manchas pretas<br />
postiças para parecer uma sobrevivente à peste, foi ao recinto on<strong>de</strong> eram manti<strong>do</strong>s os <strong>do</strong>entes e<br />
falou com um homem cujo rosto era quase to<strong>do</strong> preto, a não ser por uma pequena mancha ainda<br />
rosada em volta <strong>do</strong> olho esquer<strong>do</strong>.<br />
– Quero trabalhar com vocês – disse.<br />
O homem ficou olhan<strong>do</strong> para ela por alguns instantes.<br />
– Apresente-se lá no fun<strong>do</strong> e peça um <strong>do</strong>s nossos uniformes. Po<strong>de</strong> começar agora mesmo.<br />
<strong>Adhara</strong> foi à tenda que lhe fora indicada. Iria ficar, <strong>do</strong> único jeito que podia. Iria vê-lo todas as<br />
noites, e toda noite enfrentaria a mesma batalha da noite anterior, lutaria contra San, pela alma <strong>de</strong><br />
Amhal. E não iria ren<strong>de</strong>r-se.<br />
Para Amhal, era como se pouco a pouco tu<strong>do</strong> <strong>de</strong>saparecesse <strong>do</strong> seu campo <strong>de</strong> visão. Já quan<strong>do</strong><br />
estava viajan<strong>do</strong> para Damilar, na garupa <strong>de</strong> Jamila, percebera que alguns <strong>do</strong>s elementos da sua<br />
vida haviam fica<strong>do</strong> fora <strong>de</strong> foco. No começo aceitara a novida<strong>de</strong> quase com alívio. Porque o<br />
primeiro a <strong>de</strong>saparecer fora o sofrimento pela perda <strong>de</strong> Mira. As lembranças <strong>do</strong> treinamento, <strong>do</strong>s<br />
dias passa<strong>do</strong>s juntos, tinham paulatinamente si<strong>do</strong> engolidas por um <strong>de</strong>nso esquecimento que<br />
embotava os senti<strong>do</strong>s e amenizava a <strong>do</strong>r.<br />
Mas tu<strong>do</strong> nele havia começa<strong>do</strong> a <strong>de</strong>smoronar. A sua vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> lutar contra si mesmo, as<br />
coisas nas quais até então acreditara. O sofrimento que <strong>de</strong>scobrira naquele lugar parecia corroêlo,<br />
comê-lo vivo.<br />
Em Damilar a sua espada já não servia para proteger, pois nada sobrava para ser <strong>de</strong>fendi<strong>do</strong>.<br />
Só prestava para <strong>de</strong>smembrar, ferir, <strong>de</strong>struir. A matar quem tentava fugir <strong>do</strong> recinto <strong>do</strong>s <strong>do</strong>entes,<br />
a reprimir com violência as brigas entre os retirantes nos arre<strong>do</strong>res <strong>do</strong> acampamento e, ainda, a<br />
impor nos vilarejos o respeito da quarentena. Mas com que finalida<strong>de</strong>? Só havia morte, por toda<br />
parte. À sua volta as pessoas a<strong>do</strong>eciam. O mesmo pessoal com que <strong>de</strong> manhã você falava,<br />
queixan<strong>do</strong>-se da chuva ou <strong>do</strong> frio, muitas vezes à noite já agonizava com as primeiras manchas<br />
cobrin<strong>do</strong>-lhe a pele. Alguns saravam, isto é verda<strong>de</strong>, mas ficavam marca<strong>do</strong>s pelo resto da vida.