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Parecia especial. Como mostrar a alguém uma capela particular, um lugar
secreto, onde, como o penhasco, vamos para ficar sozinhos, para sonhar com
outras pessoas. Era aqui que eu sonhava com você antes de você entrar na
minha vida.
Gostei do comportamento dele na livraria. Demonstrava curiosidade, mas não
atenção, interesse, e sim uma leve indiferença, alternando entre Olhe o que eu
achei e É claro, como uma livraria poderia não ter esse livro! O vendedor
tinha encomendado duas cópias de Armance, de Stendhal, uma brochura e
outra mais cara, de capa dura. Um impulso me fez dizer que levaríamos as
duas e que ele devia colocar na conta do meu pai. Então pedi uma caneta ao
assistente, abri a edição de capa dura e escrevi “Zwischen Immer und Nie,
para você em silêncio, em algum lugar na Itália em meados dos anos oitenta”.
Nos anos que viriam, caso ainda tivesse o livro, queria que ele sentisse
saudade. Melhor ainda, queria que alguém que estivesse olhando seus livros
um dia abrisse aquele pequeno volume de Armance e perguntasse: Quem
estava em silêncio em algum lugar na Itália em meados dos anos oitenta?
Então queria que ele sentisse algo tão agudo quanto o pesar e mais feroz que
o arrependimento, talvez até pena de mim, porque na livraria naquela manhã
eu também teria aceitado a pena, se fosse tudo que ele tivesse a oferecer, se a
pena pudesse fazer com que ele me abraçasse e, sob essa onda de pena e
arrependimento, suspensa como uma corrente vaga e erótica que levara anos
para se formar, eu queria que ele se lembrasse daquela manhã no penhasco de
Monet em que o beijei não pela primeira, mas pela segunda vez e coloquei
minha saliva em sua boca porque queria desesperadamente a dele na minha.
Ele disse algo sobre ser o melhor presente que recebeu o ano inteiro.
Dei de ombros diante daquela gratidão formal. Talvez eu só quisesse que ele
repetisse.
— Fico feliz. Só queria agradecer por esta manhã. — E antes que ele pudesse
pensar em interromper, acrescentei: — Eu sei. Sem discursos.
Nunca.