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Ah, eu gosto muito dele, dizia nos primeiros dez dias quando meu pai
perguntava minha opinião. Eu usava palavras intencionalmente
comprometedoras porque sabia que ninguém suspeitaria de um fundo falso na
misteriosa paleta de sombras que eu aplicava em tudo o que dizia sobre ele. É
a melhor pessoa que eu conheci na vida, eu disse na noite em que o
barquinho de pesca no qual ele embarcara com Anchise não voltava e
resolvemos procurar pelo telefone dos pais dele nos Estados Unidos para o
caso de ter que dar uma notícia terrível.
Naquele dia cheguei mesmo a me obrigar a deixar de lado minhas inibições e
demonstrar minha aflição, como todos os outros. Mas também o fiz para que
ninguém suspeitasse de que eu alimentava dores muito mais secretas e
desesperadas — até que percebi, quase envergonhado, que parte de mim não
se importava se ele tivesse morrido, que havia até mesmo algo empolgante na
imagem de seu corpo inchado e sem olhos finalmente aparecendo na praia.
Mas eu não enganava a mim mesmo. Estava convencido de que ninguém no
mundo o desejava de modo tão primitivo quanto eu; de que ninguém estava
disposto a ir até onde eu iria por ele. Ninguém tinha estudado cada osso de
seu corpo, tornozelos, joelhos, pulsos, dedos das mãos e dos pés, ninguém
desejava cada contração muscular, ninguém o levava para a cama todas as
noites e, ao vê-lo de manhã deitado em seu paraíso à beira da piscina, sorria
para ele, via o sorriso vir a seus lábios e pensava, Sabia que eu gozei na sua
boca ontem à noite? Talvez até os outros nutrissem outro tipo de sentimento
por ele, que ocultavam e expunham a seu modo. Ao contrário dos outros, no
entanto, eu era o primeiro a vê-lo quando ele entrava no jardim ao vir da praia
ou quando o contorno frágil de sua bicicleta, ofuscada pela névoa da tarde,
aparecia na alameda de pinheiros que levava até a nossa casa. Fui o primeiro
a reconhecer seus passos quando ele chegou atrasado ao cinema e ficou
procurando por nós, sem dizer uma palavra, até me virar para ele com a
certeza de que ficaria feliz por eu tê-lo visto.
Eu o reconhecia pela inflexão de seus passos quando subia a escada até a
varanda ou passava na frente do meu quarto no corredor. Eu sabia quando ele
parava diante das portas francesas do meu quarto, hesitava quanto a bater,
decidia-se pelo não e continuava andando. Eu sabia que era ele pedalando