O MISTÉRIO DA ÁRVOREEsgalhada e seca, os seus frutos eram cadáveres ou corvos. Ninguém selembrava que tivesse dado folhas nem flor, a árvore enorme que havia séculosservia de forca: ninguém se deitava à sua sombra, e até o sol fugia da árvoreestarrecida e hirta que havia séculos servia de forca.Em frente ficava o Palácio Real, construído num bloco de pedra escura, esó o Rei, de alma igual à sua alma, nua e trágica, se pusera a amá-la, a árvoretriste que havia séculos servia de forca.Que doença estranha, lenta mas tenaz, matava o Rei?... Só amava oscrepúsculos, as agonias da luz, o passado, e a multidão silenciosa vinha vê-lo,ao fim da tarde, de cabeça encostada aos vidros das janelas, fixo o olhar naságuas verdes e limosas e no espectro da árvore levantada diante do Palácio.Tudo o que era vivo fugira de ao pé dele, porque o Rei mandava punir ajuventude e o amor, e dez léguas à roda o país tinha sido assolado pelos seusguerreiros brutais. Mandara queimar tudo, devastar tudo no seu reino. Nemuma folha nem uma ave — nem um sinal de vida. De pé unicamente a árvore,desde séculos estarrecida e hirta, a árvore maldita que no seu reino servia deforca.
No silêncio tumular do Palácio os passos do Rei ecoavam pelos corredoresdesertos, lentos ou precipitados, conforme o pensamento tenaz que odevorava, gastando pouco a pouco as lajes duras do chão. Não podia amar.Nem a voluptuosidade, nem o ideal, nem o amor, nem a carne láctea dasmulheres: tudo lhe era vedado. Horas atrás de horas se ouviam no Palácio ospassos do Rei doente, toda a noite, toda a noite a rondar...Sucedeu que veio a primavera e todas as árvores, para lá do territórioassolado, estremeceram e se cobriram de flor. Borboletas nascidas do seuhálito noivavam no azul, e dois mendigos amorosos, de países lendários,entraram e perderam-se naquela terra praguenta, ela envolta na poalha doscabelos louros, ele feliz e esbelto, preso ao seu olhar. Eram pobres. E assim,apenas vestidos, vieram enlaçados com a primavera cobrindo a terra erma quecalcavam de vida e de amor. Eram pobres e felizes. Flores esvoaçavam pelasua nudez, e as macieiras dos quintais deitavam galhos fora dos muros, depropósito para os ver passar.Azul, sonho, entontecimento, toda a atmosfera estremecia. Só o Rei noPalácio deserto vivia braço a braço com a dor. A vida, a luz, as árvoresenojavam-no. Queria todo o país negro, deserto e escalvado; e o amor quetrespassava a terra e os bichos, a própria morte que tudo transforma, lhepareciam abominação e afronta. Odiava a vida. Mas deitava-se e sentia palpitaras fragas: os montes eram seios duros, as árvores cabelos ao vento. Para nãover, encerrava-se no Palácio construído de um bloco de pedra, e sozinho
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A MORTE DO PALHAÇORAUL BRANDÃOEst
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PREÂMBULOA cada passo se formam po
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Outro momento e tudo isto desaparec
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Aos que se alimentam de sonho chega
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esgoto de lama amassada em lágrima
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feitio de encolhido, gestos desajei
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Mas ponho-me a pensar: Que importa
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contacto com o mundo. Cheio de entu
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Ninguém bulia. Que quimera doloros
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Morrer é não sentir, não ver, n
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CAPÍTULO IA CASA DE HÓSPEDESSingu
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Vocês todos têm pensado na vida d
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— Desaforado... Cite factos, ench
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grande, como um pintor que na febre
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E ele, descendo as escadas, com jú
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Tomado de respeito por tanto saber,
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E assim as casas, as paredes e as c
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mesquinho, impotente, tenho a certe
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CAPÍTULO IIICAMÉLIARompeu a sinfo
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de cetim escarlate ou verde, calvos
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Calábria, e porventura amado por u
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E tudo na treva é fantástico. Uma
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Não sei bem que impressão amarga
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A seguir Lídio trabalhou. A toda a
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tarde para a recomeçar! — E era
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