25.08.2015 Views

A MORTE DO PALHAÇO

Untitled - Luso Livros

Untitled - Luso Livros

SHOW MORE
SHOW LESS

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

K. Maurício, a quem conhecíamos pelo homem do violino, era de todosnós o que menos aparecia e talvez por isso mesmo o que mais me interessava.Falava pouco. Só eu conseguia arrancar algumas palavras a esse tipo que,tendo encontrado um dia o Sonho, passou a viver para o sonho. Desdenhou avida pelo sonho, a mulher pelo sonho. Mais velho que todos nós e mais artistatambém, não era só a sua extraordinária música que nos atraía — era naverdade a sua figura, que o sonho parecia dia a dia consumir e devorar. Nosúltimos tempos parecia mais uma sombra aureolada que um homem. Vivianuma trapeira, onde íamos bater de vez em quando. Debalde o chamávamos àrealidade. Silêncio — ninguém respondia. Mas todos tínhamos a impressãoque lá dentro ardia uma forja: pelas frinchas da porta saíam faúlhas, cintilas,dourado... Dias depois reaparecia, e a sua dor, o seu sonho traduzia-os emsons extraordinários, numa música que nos raspava os nervos até ao fundo daalma. Era uma criatura singular — posso eu dizê-lo que o conheci melhor queos outros, e que completei a figura pelos papéis que deixou. Dor e sonho — éo que sai das suas notas.Sempre dor! A verdade é que a maior parte do sofrimento deste homemproveio de ter criado ao lado da vida outra vida imaginária. K. Maurício fez daexistência — e isto é que constituiu a sua originalidade — um sonho. Fechousepor dentro para sonhar — isolou-se para sonhar. E, quando um dia quisreentrar na vida, titubeava como um ébrio — com os olhos espantados: tudoeram ângulos e asperezas que o feriam.

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!