Calábria, e porventura amado por uma linda mulher, que de paixão se finara.Cá fora, finda a noite de circo, emudecia numa tristeza abandonada, e absortodobrava-se à beira da sua alma, como na margem de um lago... Apenas,porém, entrava na arena, enorme, esquelético, calvo e vestido de púrpura —assim tivesse atravessado um rio de sangue ou a vida — logo a sua figura setransformava, e nunca palhaço soube exprimir como ele o lado grotesco dadesgraça e a amargura do riso. Ia à morte e desconjuntava-a: entortava-lhe aspernas, punha-lhe a foice à banda e descobria- lhe a calva. Dir-se-ia que o seuriso era feito da experiência da vida e que esse palhaço estranho foraconstruído com a lama de todos os vícios e com as lágrimas de todas asamarguras...Era indiferente à multidão. Parecia que para ele só representava as farsascínicas, sempre a mesma maneira de interpretar a vida que fazia frio.Lembrava um pícaro cadáver, anguloso e torto, que viesse fazer escárnio dacova. Às vezes a multidão enregelada pateava-o com fúria — e ele nemreparava. Depois sublinhava, tinha tiques que nunca mais esqueciam — eforçoso era que conhecesse tudo e tudo desprezasse, para assim tirar da Vidae da Dor, da Morte e do Amor, motivos de escárnio, de afinal o público nãosaber se rir se chorar.Quando entrou na arena ainda Odília trabalhava no trapézio. Era umafigura de doença a desconjuntar-se, vestida de gaze verde, na cúpula do circo.Sorria. A cada momento parava, oferecia-se, agradecia com beijos atirados à
multidão indiferente, ávida de perigos e de sensações fortes. Desceu a corda,saiu, com o mesmo resignado sorriso na boca, como uma pobre criatura quese despede...Que se sabia da vida do Palhaço? Apenas terminado o trabalho,desaparecia, e toda a noite ou todo o dia o passava no covil da casa dehóspedes, a tecer ideias e a sonhar... O bico aguçara-se-lhe, mais salientes asmaxilas, mais funda a ruga que lhe cortava a face, e duas ou três mechas decabelo no crânio — máscara picara e sinistra. A figura ossuda criara maioresangulosidades e feitios desengonçados. Encontrou por acaso algum de vocêsum homem que aflija como um remorso? Um velho que sintetize uma vidacheia de ilusões a princípio, depois batido e escarnecido, que dê medo desonhar e vontade de só pensar no ouro e na prática?... Tem-se um arrepio. Aminha quimera despedaçar-se-á como a dele e terei um fim de vida, por muitoquerer sonhar, de vilipêndio, de escárnio, e, o que é pior, sem ilusão?...Assim, de toda a quimera antiga, de todo o sonho que lhe esbraseara asnoites e lhe varria as tristezas, só aquilo restava. Em vez de ser um grande atorque interpretasse, de uma maneira única, a miséria, a morte e o amor, eraapenas um pobre palhaço de circo... Caída na lama, a quimera parece sempregrotesca.Foi nesta ocasião que apareceram no circo Camélia e Lídio. Vinham juntos,juntos percorriam o mundo, vivendo uma vida livre, de amor e perigo. Raro
- Page 2 and 3: A MORTE DO PALHAÇORAUL BRANDÃOEst
- Page 4 and 5: PREÂMBULOA cada passo se formam po
- Page 6 and 7: Outro momento e tudo isto desaparec
- Page 8 and 9: Aos que se alimentam de sonho chega
- Page 10 and 11: esgoto de lama amassada em lágrima
- Page 12 and 13: feitio de encolhido, gestos desajei
- Page 14 and 15: Mas ponho-me a pensar: Que importa
- Page 16 and 17: contacto com o mundo. Cheio de entu
- Page 18 and 19: Ninguém bulia. Que quimera doloros
- Page 20 and 21: Morrer é não sentir, não ver, n
- Page 22 and 23: CAPÍTULO IA CASA DE HÓSPEDESSingu
- Page 24 and 25: Vocês todos têm pensado na vida d
- Page 26 and 27: — Desaforado... Cite factos, ench
- Page 28 and 29: grande, como um pintor que na febre
- Page 30 and 31: E ele, descendo as escadas, com jú
- Page 32 and 33: Tomado de respeito por tanto saber,
- Page 34 and 35: E assim as casas, as paredes e as c
- Page 36 and 37: CAPÍTULO IIHALWAINUm grito, um gri
- Page 38 and 39: mesquinho, impotente, tenho a certe
- Page 40 and 41: CAPÍTULO IIICAMÉLIARompeu a sinfo
- Page 42 and 43: de cetim escarlate ou verde, calvos
- Page 46 and 47: falavam com os outros artistas, e e
- Page 48 and 49: E tudo na treva é fantástico. Uma
- Page 50 and 51: irrealizados, as ilusões que flutu
- Page 52 and 53: A sua timidez era enorme — maior
- Page 54 and 55: viveres — e a realidade obriga-te
- Page 56 and 57: O Gregório estoirava. Fora sempre
- Page 58 and 59: — Como mulheres deitadas, de enor
- Page 60 and 61: — Pode cair o pano!Esta estranha
- Page 62 and 63: E ele confessou a tremer:— Amo.O
- Page 64 and 65: — Porque não experimentas tu as
- Page 66 and 67: Não sei bem que impressão amarga
- Page 68 and 69: E o Pita, sabedor da vida e de todo
- Page 70 and 71: Todo o vasto circo cheio de ruído
- Page 72 and 73: A seguir Lídio trabalhou. A toda a
- Page 74 and 75: tarde para a recomeçar! — E era
- Page 76 and 77: trapézio tecendo com os braços a
- Page 78 and 79: O Diário de K. Maurício é consti
- Page 80 and 81: comigo um dos múltiplos seres de q
- Page 82 and 83: — coveiro que anda a abrir a pró
- Page 84 and 85: Desolação infinita destas noites
- Page 86 and 87: inéditos de alma, se dissesse toda
- Page 88 and 89: Ao contacto da vida cada vez me deg
- Page 90 and 91: Eu estou doido! A minha vida é uma
- Page 92 and 93: os outros, de tanto escutarem, vão
- Page 94 and 95:
desgraça! — ter vivido, tudo viv
- Page 96 and 97:
opalino, por um azul do céu que os
- Page 98 and 99:
estremece, de tal maneira que me qu
- Page 100 and 101:
Sensibilidade exasperada, com ímpe
- Page 102 and 103:
A verdade é que a minha alma é se
- Page 104 and 105:
vida ser só isto, por o sol brilha
- Page 106 and 107:
é vã como os berros daquele bêba
- Page 108 and 109:
árvores com grandes cabelos verdes
- Page 110 and 111:
ir encontrar no infinito, pois que
- Page 112 and 113:
uma fonte... Andei, era a hora: lá
- Page 114 and 115:
fingir que tenho afeições e admir
- Page 116 and 117:
instante me faças tropeçar e faze
- Page 118 and 119:
3ª PARTEOS SEUS PAPÉIS(Contos e t
- Page 120 and 121:
Esta feição, que transparece na p
- Page 122 and 123:
A LUZ NÃO SE EXTINGUEUma luz que s
- Page 124 and 125:
cada vez mais. O padre senta-se num
- Page 126 and 127:
O MISTÉRIO DA ÁRVOREEsgalhada e s
- Page 128 and 129:
ficava então de olhos postos na á
- Page 130:
Só a árvore esgalhada e seca o pr
- Page 133 and 134:
Supunha-se no país que ele se form
- Page 135 and 136:
Cada ano, em Abril, a procissão do
- Page 137 and 138:
avança a fila dos noivos, branca e
- Page 139 and 140:
SANTA EPONINASanta Eponina era tão
- Page 141 and 142:
Como soube que nas concavidades dos
- Page 143 and 144:
Oh como a noite é grande, imóvel,
- Page 145 and 146:
matilhas esperá-la à beira dos ca