Todo o vasto circo cheio de ruído era extraordinário de colorido. Aatmosfera aquecera. A música hílare em torrentes de sons acompanhava ostrabalhos de agilidade e fantasia, que o público acentuava com palmas, comgritos, com ahs! de satisfação, com silêncios de espanto, com assobios deprotesto. As mulheres, recortadas na luz artificial, pareciam mais belas, osmovimentos perfeitos. Ah!, exclamava a multidão, que dali levava umresquício de claridade, alguma alegria e um pouco de ritmo e de sonho, paraesquecer o negrume da vida.Na claridade violenta do circo, Camélia apareceu enfim sobre o cavalonegro, toda branca, e passou rápida, esbelta e loura, a sangrar na luz púrpura,rósea e evocada num sonho, imagem que se desdobrava, na fúria do galope eno triunfo da música, como uma figura de quimera, conforme os jatos dosrefletores. As cores, restos de poente, escamas de sol, escorriam sobre ocavalo negro, até que, entre a rajada de palmas, caiu no selim, com uma graçade cisne, toda branca outra vez...O Palhaço, numa cabriola, veio então rojar-se-lhe aos pés, amoroso ecómico... Todo de seda negra, ferida de escarlate, junto à gracilidade de nuvemde Camélia — céu de catástrofe onde o luar aparecesse — dava a impressãode um salteador que tentasse violar uma virgem. Era certo que os seus olhos,na face longa e amarela, tinham desespero, amargura, falavam de ilusõesdespedaçadas, mas os seus braços desengonçados, todo o corpo anguloso e
torto, abririam risos de escárnio até na quimérica ventura de um noivado.Aquele pedaço de clowneria estrelava-lhe todo o resto da noite.Para que ela se não risse, fingia o amor (bem sentido e cavado na sua alma,na verdade), fazia da paixão um riso e de tudo o que tinha em si de ternura,como uma árvore que foi forca e se cobriu de floração — uma gargalhada.Não, não queria que ela se risse ou tivesse piedade, mas no feitio lambãoporque passava a mão pelo seu peito marmóreo e lácteo de estátua, paradepois chupar com gula os dedos, havia amarguras inéditas; no olhar raivas e,em todo o corpo desengonçado de clown, ímpetos de a morder e fugir comela presa nas garras.Um minuto de pausa: a mulher toda branca caiu outra vez sobre o dorso nudo cavalo; de dentro, com a lufada fresca do ar, veio o cheiro a cavalariçamisturar-se ao ruído das palmas. E logo a galopada, no estridor da música,recomeçou, e Camélia, como a fantasia de um poeta, verde, escarlate, asangrar como um crime, incarnou outra vez a quimera, sobre o cavalo negro eraivoso, e de rastos, agarrado às crinas do animal, o Palhaço desatou aosgritos, despedaçado de encontro à arena — restos de um amor do passado,ilusões mortas, venturas para sempre perdidas na lama e no esquecimento... Eas palmas da multidão caíram como granizo.
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Aos que se alimentam de sonho chega
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esgoto de lama amassada em lágrima
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feitio de encolhido, gestos desajei
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Mas ponho-me a pensar: Que importa
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contacto com o mundo. Cheio de entu
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Ninguém bulia. Que quimera doloros
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A LUZ NÃO SE EXTINGUEUma luz que s
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cada vez mais. O padre senta-se num
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O MISTÉRIO DA ÁRVOREEsgalhada e s
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Só a árvore esgalhada e seca o pr
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SANTA EPONINASanta Eponina era tão
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Como soube que nas concavidades dos
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Oh como a noite é grande, imóvel,
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matilhas esperá-la à beira dos ca