falavam com os outros artistas, e em torno deles se formara uma lenda. Eramtalvez filhos de príncipes, fugidos para se poderem amar, ou criminosos, comum passado de remorsos e dor... Com eles andava sempre um grotesco clown,que nem sei bem como se chamava. Nesse tempo passavam pelo circo tantosnomes que apenas conservo no fundo da memória vestígios de cartazes, ouroe escarlate, como restos de pompa e de grandeza da minha vida de então. Eununca tive memória e de tanto sonhar tudo confundi, realidade e quimera...Todos o conheciam e sabiam que vivia no circo para fazer rir o público. Era ofaz-tudo, o sofredores: levava os pontapés a valer e os tombos que magoamdeveras. A multidão chamava-o como um cão, por assobios, e, por não tergraça nenhuma e ser desajeitado e se pôr às vezes a chorar — toda a gente seria.O circo era enorme e todas as noites a Cidade esguichava para ali amultidão, ávida de perigos alheios, e, entre leques de gás a assobiar, tenhoainda no cérebro a visão do público, de olhares fixos no prato da arena todabranca... O riso soprava por vezes como uma ventania furiosa.Pôs-se o Palhaço a amar Camélia. Lídio e Camélia e ele eram os artistas quea multidão aplaudia. Do outro clown também se riam com ferocidade: nuncaali aparecera um palhaço como ele. Torto, anguloso e, no quadrilongo da face,os olhos furados a verruma. Nunca o vi senão de seda preta e na cabeça,posto ao lado, um chapéu alto velhíssimo e rapado — um chapéu que fazia
estancar as gargalhadas e pensar na miséria... O Palhaço era o seu únicoamigo.Visto que se pusera a amar Camélia, o clown atraíra-o como a decifração deum mistério, ou como a desgraça alheia encanta a nossa própria desgraça.Encontrava-o sempre deitado à porta do camarim de Camélia e nos olharesdo louco surpreendera porventura um mundo de amor. Era decerto como eleum infeliz. A pouco e pouco conquistara-lhe a amizade. Bebiam juntos e, denoite, terminado o espetáculo, partiam de conversa pela cidade. Era singular odiálogo, cheio de grosserias e de ideal, palavras raspadas na alma de cada um,gritos, frases que estremeciam de dor.A Cidade para aqueles sítios é cheia de negrume e de velhos palácios ecasebres onde gerações inteiras passaram a vida, com as suas angústias e assuas alegrias. Corações bateram, almas floriram. Teceram-se obras de génio ecanduras. Não há ali pedra que não saiba contar crimes e amores e, decerto,cada calhau, a princípio inerte, criou coração, sensibilidade e alma. Ou queremacaso sustentar que as coisas ficaram gélidas, sem se influenciar por todas asvidas dos que por ali transitaram?... A mim, nestas noites de luar caladas emisteriosas, me parece distingui-los, aos duendes, errantes em torno de cadaprédio, e revivendo antigos dias de felicidade e de angústia. Vejo distintamenteque se despegam das pedras, ideias, gritos, falenas escuras, que esvoaçam uminstante e se perdem na noite, com um sussurro de asas ou de vozes tristes.
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A LUZ NÃO SE EXTINGUEUma luz que s
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cada vez mais. O padre senta-se num
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O MISTÉRIO DA ÁRVOREEsgalhada e s
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ficava então de olhos postos na á
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