Ao contacto da vida cada vez me degrado mais. Fujo para o sonho com um«ah!» de satisfação... E há dias em que me enlameio na vida para me encharcarcom mais alegria no sonho.Fecho as janelas e as portas — fecho tudo — porque só a noite é propíciaao sonho — e reentro na minha vida habitual, na única em que me sinto viver,em que sou rei e amado, com os fantasmas que criei e que vivem na minhacompanhia. Até as paisagens de sonho me parecem mais belas que as darealidade.Já vivi numa cidade construída de restos de sonho que uma ventania deloucura atirara para a planície, como nuvens aglomeradas num fundo azuladode tempestade.(Às vezes os meus sonhos riscam-se de carvão, mordem-se de delírio — ehá fisionomias que depois encontro na vida e que já vi com linhas diferentesque as desfiguravam. Na rua surpreendo às vezes olhares de quem meconhece, logo reprimidos...)Era uma cidade edificada ao pé de uma laguna vítrea como o olhar de ummorto: água gélida e polida ao fundo da planície, que nenhuma charrualavrara, Nínive construída de uma só pedra enorme e negra....Sei que a multidão, no silêncio e no negrume, arrancava de súbito emcorrerias pelas ranhuras esganadas das ruas, sem destino e sem sentido.Curvada, numa dor contida e atroz, sumia-se na noite e deixava um risco de
som magoado como uma viola que se parte. Ficaram-me na memória restosde caras aflitivas, linhas, esgares, corpos hirtos e rapados. Toda a turba fugira,subindo um calvário, descera o monte, alagara o vale, terras nuas até aohorizonte acarvoado, com um brilho de dúbia claridade quieta ao meio... E,porque as nuvens alastrassem, desaparecera, comida da treva, como se atragasse, num grande silêncio, a própria noite.Mas a claridade cortou outra vez o céu, uma claridade baça, imóvel, emfeixes, iluminando metade do monte, metade do vale, deixando o resto nonada, uma grande mancha alastrada sobre a vertente da esquerda, e a multidãoapareceu, indecisa, fugidia, adivinhada extensa na luz dúbia, a encher toda aplanície, como num carvão de Sequeira, e troncos contorcionados, facesarrepiadas, contrações de dor, misturavam- se, a subir, a esgadanhar-se, numafúria de vida... E, como a luz caísse então para o fundo, toda a planície secoalhava da turba. E os gestos que eu fazia repetia-os a multidão, e risosbaixinhos, como um chapinhar de maré, iam agora do princípio ao fim daplanície...Sucede-me às vezes ir pela rua fora e ter a impressão de que toda a genteparou a olhar-me. Não me volto para não endoidecer, porque tenho a certezaque dava com a multidão parada, imóvel, a olhar para mim, não com a mesmacara indiferente em que fingem não me conhecer, mas com a outra dolorosa,com a cara trágica da verdade com que as encontro no sonho. Os risos, oiçoose perseguem-me como o chapinhar da maré que sobe...
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Aos que se alimentam de sonho chega
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esgoto de lama amassada em lágrima
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feitio de encolhido, gestos desajei
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Mas ponho-me a pensar: Que importa
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contacto com o mundo. Cheio de entu
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Ninguém bulia. Que quimera doloros
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Morrer é não sentir, não ver, n
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Vocês todos têm pensado na vida d
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— Desaforado... Cite factos, ench
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grande, como um pintor que na febre
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E ele, descendo as escadas, com jú
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Tomado de respeito por tanto saber,
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E assim as casas, as paredes e as c
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SANTA EPONINASanta Eponina era tão
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Como soube que nas concavidades dos
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Oh como a noite é grande, imóvel,
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matilhas esperá-la à beira dos ca