CAPÍTULO IA CASA DE HÓSPEDESSingular ligação a destes tipos que o acaso reunia naquela casa de hóspedesda D. Felicidade: um doido, um anarquista, o Pita, a patroa, o Gregório,antigo chefe de repartição, que havia anos estava encarangado num quarto,uma velha que só saía de noite, e essa figura amarga, o Palhaço, que passavahoras como se só a si próprio se escutasse. Todos tinham chegado ao fim davida, de unhas arrepeladas para o gozo, com o aspeto das coisas servidas quese deitam fora. Usados pela existência, pela ambição e pela febre, arregalavamos olhos para a vida. Neles havia o que quer que era que inquietava e faziapensar. Em vez de ficarem de uma secura atroz, tendo analisado de pertotodos os sentimentos, o amor e a amizade, a experiência dera-lhes tintas desonho ao desespero: e era como se um bicho de esgoto criasse asas e sepusesse a voar. O Doido sonhava — e todas as suas visões vagas caminhavamnuma atmosfera de beleza, para de súbito, num pormenor, ficarem grotescas,aos pulos como um sapo. O Anarquista tinha gestos de profeta, e na suaeloquência havia rasgos de visionário: como um vendaval que arrombavaportas, assim ela entrava pelo sonho dentro, engrandecida. Evocava asmultidões, a miséria humana, a dor humana. O Pita era um misto de filósofo ede ladrão. Sabia tudo, vendia tudo. Amara princesas e trazia um velho xaile-
manta, que de tanto ter visto a miséria parecia arrepiado. A Velha passava odia a contar as rugas diante do espelho, na raiva de se sentir escarnecida.Meditava quanto tempo podia amar ainda, enganava-se e convencia-se de quenão estava velha nem feia. Punha flores no seio estancado e raso como umatábua e arrepiava os cabelos. À noite saía, rodava nos sítios escuros à esperade uma aventura de amor, ou, desvairada, ia pelas ruas da cidade, a arrastar umxaile púrpura.O Pita às vezes seguia-a e espiava-a, com o olho cheio de curiosidade,ruminando lá por dentro:— Encontro-as às vezes nas ruas, caiadas aos sessenta anos e sonhandoainda com a juventude. E são as que se atrevem, as que se expõem aos riscos,porque muitas como esta arrastam pelas casas de hóspedes o seu sonhoinapaziguado de amor... Fá-la tímida e má o ter de viver duas vidas, uma deimaginação, outra de realidade. Por isso tem o olhar desvairado para dentro,de quem segue um sonho e anda neste mundo por acaso. Esta cidade trágicafez-lhe um cenário perfeito, com a noite em que a escumalha vem à tona, asruas esganadas e o vício... atrever-se-á ela? Duvido... Viver é tudo!... Viver!...Se todos estes seres se juntavam e conversavam, as suas palavras ardiam ougelavam: causavam arrepios, como lâminas que de repente se desembainham eficam no ar suspensas: eram feitas de cadáveres ou de claridades... Umas vezespendiam para o sonho; outras para a terra.
- Page 2 and 3: A MORTE DO PALHAÇORAUL BRANDÃOEst
- Page 4 and 5: PREÂMBULOA cada passo se formam po
- Page 6 and 7: Outro momento e tudo isto desaparec
- Page 8 and 9: Aos que se alimentam de sonho chega
- Page 10 and 11: esgoto de lama amassada em lágrima
- Page 12 and 13: feitio de encolhido, gestos desajei
- Page 14 and 15: Mas ponho-me a pensar: Que importa
- Page 16 and 17: contacto com o mundo. Cheio de entu
- Page 18 and 19: Ninguém bulia. Que quimera doloros
- Page 20 and 21: Morrer é não sentir, não ver, n
- Page 24 and 25: Vocês todos têm pensado na vida d
- Page 26 and 27: — Desaforado... Cite factos, ench
- Page 28 and 29: grande, como um pintor que na febre
- Page 30 and 31: E ele, descendo as escadas, com jú
- Page 32 and 33: Tomado de respeito por tanto saber,
- Page 34 and 35: E assim as casas, as paredes e as c
- Page 36 and 37: CAPÍTULO IIHALWAINUm grito, um gri
- Page 38 and 39: mesquinho, impotente, tenho a certe
- Page 40 and 41: CAPÍTULO IIICAMÉLIARompeu a sinfo
- Page 42 and 43: de cetim escarlate ou verde, calvos
- Page 44 and 45: Calábria, e porventura amado por u
- Page 46 and 47: falavam com os outros artistas, e e
- Page 48 and 49: E tudo na treva é fantástico. Uma
- Page 50 and 51: irrealizados, as ilusões que flutu
- Page 52 and 53: A sua timidez era enorme — maior
- Page 54 and 55: viveres — e a realidade obriga-te
- Page 56 and 57: O Gregório estoirava. Fora sempre
- Page 58 and 59: — Como mulheres deitadas, de enor
- Page 60 and 61: — Pode cair o pano!Esta estranha
- Page 62 and 63: E ele confessou a tremer:— Amo.O
- Page 64 and 65: — Porque não experimentas tu as
- Page 66 and 67: Não sei bem que impressão amarga
- Page 68 and 69: E o Pita, sabedor da vida e de todo
- Page 70 and 71: Todo o vasto circo cheio de ruído
- Page 72 and 73:
A seguir Lídio trabalhou. A toda a
- Page 74 and 75:
tarde para a recomeçar! — E era
- Page 76 and 77:
trapézio tecendo com os braços a
- Page 78 and 79:
O Diário de K. Maurício é consti
- Page 80 and 81:
comigo um dos múltiplos seres de q
- Page 82 and 83:
— coveiro que anda a abrir a pró
- Page 84 and 85:
Desolação infinita destas noites
- Page 86 and 87:
inéditos de alma, se dissesse toda
- Page 88 and 89:
Ao contacto da vida cada vez me deg
- Page 90 and 91:
Eu estou doido! A minha vida é uma
- Page 92 and 93:
os outros, de tanto escutarem, vão
- Page 94 and 95:
desgraça! — ter vivido, tudo viv
- Page 96 and 97:
opalino, por um azul do céu que os
- Page 98 and 99:
estremece, de tal maneira que me qu
- Page 100 and 101:
Sensibilidade exasperada, com ímpe
- Page 102 and 103:
A verdade é que a minha alma é se
- Page 104 and 105:
vida ser só isto, por o sol brilha
- Page 106 and 107:
é vã como os berros daquele bêba
- Page 108 and 109:
árvores com grandes cabelos verdes
- Page 110 and 111:
ir encontrar no infinito, pois que
- Page 112 and 113:
uma fonte... Andei, era a hora: lá
- Page 114 and 115:
fingir que tenho afeições e admir
- Page 116 and 117:
instante me faças tropeçar e faze
- Page 118 and 119:
3ª PARTEOS SEUS PAPÉIS(Contos e t
- Page 120 and 121:
Esta feição, que transparece na p
- Page 122 and 123:
A LUZ NÃO SE EXTINGUEUma luz que s
- Page 124 and 125:
cada vez mais. O padre senta-se num
- Page 126 and 127:
O MISTÉRIO DA ÁRVOREEsgalhada e s
- Page 128 and 129:
ficava então de olhos postos na á
- Page 130:
Só a árvore esgalhada e seca o pr
- Page 133 and 134:
Supunha-se no país que ele se form
- Page 135 and 136:
Cada ano, em Abril, a procissão do
- Page 137 and 138:
avança a fila dos noivos, branca e
- Page 139 and 140:
SANTA EPONINASanta Eponina era tão
- Page 141 and 142:
Como soube que nas concavidades dos
- Page 143 and 144:
Oh como a noite é grande, imóvel,
- Page 145 and 146:
matilhas esperá-la à beira dos ca