Andréa Máris Campos Guerra - CliniCAPS
Andréa Máris Campos Guerra - CliniCAPS
Andréa Máris Campos Guerra - CliniCAPS
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />
material. Nosso foco era a materialidade dessa superfície da criação artística ou<br />
artesanal que poderia oferecer-se como apoio para a construção de uma solução.<br />
Perguntávamos, nessa hipótese, se o sujeito poderia prescindir da escrita para forjar um<br />
sinthoma, dado que o caso paradigma era, então, a escrita joyceana.<br />
A discussão empreendida até então neste capítulo nos conduz a um refinamento<br />
necessário dessa discussão, a partir de dois aspectos ao menos. Primeiramente, com a<br />
introdução das noções de letra e de lalíngua na década de 70, a escrita ganha, para a<br />
psicanálise, uma nova materialidade, um novo suporte. Se antes o sujeito se escrevia<br />
sobre um traço apagado, a partir da incidência do significante do Nome-do-Pai, com a<br />
entrada da letra enquanto suporte do significante e litoral entre simbólico e real, a<br />
escrita se faz sobre a ausência de um traço anterior, ela é inaugural em si mesma. A<br />
letra, ao mesmo tempo em que escreve, faz resvalar um gozo a mais, disjunto do campo<br />
do Outro, suplementar, que carece de tratamento.<br />
Dessa forma, a superfície material de nossa hipótese não pode mais ser tomada somente<br />
como a argila ou uma tela, mas antes como letra, que pode ou não se escrever. A base<br />
dessa escrita é, ao mesmo tempo, material e substancial. E, suponhamos por hora, que<br />
essa escrita, se não se faz, não há amarração entre os registros. Na discussão dos casos,<br />
poderemos avançar sobre a caligrafia e as conseqüências da letra quanto à suplência,<br />
que se faz necessariamente a partir de uma escrita...<br />
E, como segundo aspecto, deveremos operar um deslocamento de perspectiva, de<br />
abordagem de nosso questionamento. A questão sobre a obra, sobre a criação<br />
permanece. Entretanto, ela passa a exigir uma outra maneira de ser enfocada. Não é o<br />
recurso “criação artística ou artesanal” que, presente ou ausente, realizará uma<br />
suplência. Trata-se mais do uso, da operação, que o sujeito realiza através, sobre ou a<br />
partir da criação do que dela em si mesma. A questão é, antes, a de localizar no estilo de<br />
resposta que o sujeito constrói a forma de amarração que ele realiza e nesta, então,<br />
pensar como a criação comparece. O que interessa à clínica é mais a habilidade no uso<br />
operatório dessa “arte” de saber-fazer do que a arte como recurso em si mesma.<br />
“É lá que se revela a arte, a habilidade de Joyce, e especialmente em Ulisses: capturar o<br />
deslizamento incessante do pensamento à deriva, mobilizado no endereçamento ao outro,<br />
retornando ao seu autismo; cerrar o não-sentido desse pensamento, revelar a<br />
moterialidade 58 , como dirá Lacan, na qual se fixa o não-sentido destes pensamentos que se<br />
emboscam e se captam nos significantes” (SKRIABINE, 2006, p. 61).<br />
58 Lacan brinca com a idéia de que a palavra (mot) articula uma materialidade nela mesma, pela via da<br />
letra. Daí falar em “moterialité” como sendo o que realiza a pega do inconsciente.<br />
133