Andréa Máris Campos Guerra - CliniCAPS
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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />
Ao imperativo “matarás”, “farás uma chacina”, que veicula uma forma de gozo do<br />
Outro sobre o sujeito-objeto, ele interpõe um não. Se Freud nos adverte que o símbolo<br />
da negativa é condição da estruturação da linguagem, sendo precedido por uma<br />
afirmação primordial (Bejahung) e por uma expulsão (Ausstossung) que instala um fora,<br />
A. nos testemunha, com o “não” que precisou interpor à palavra de ordem a ele imposta,<br />
uma inscrição que não se efetuou. Se A. fala e, portanto, participa de alguma maneira do<br />
dispositivo da linguagem, fato é que ele faz um uso singular das palavras. Ele também é<br />
falado no ponto em que uma letra não escreveu com o significante a condição do<br />
inconsciente, do recalque. Em outros termos, a rejeição, ou foraclusão, assenta-se sobre<br />
uma negação primordial que não se efetuou, deixando o sujeito entregue ao real e ao<br />
uso que pode dele extrair 97 . Aí o ponto a ser reparado no nó. Não estamos, portanto,<br />
diante de um desabonado do inconsciente mas, antes, diante de um sujeito que está no<br />
avesso do inconsciente, recebendo de fora (ou do real) seus significantes.<br />
A riqueza desse caso consiste exatamente no trabalho que esse sujeito faz com as<br />
palavras e com as imagens que tem à sua disposição, tanto no escrito quanto na pintura.<br />
Na busca de constituir um corpo, seu esforço incessante o conduziu a criar obras<br />
belíssimas 98 , nomeadas a partir de seus livros escritos. Além disso, no encontro com a<br />
analista algumas escansões são forjadas no seu texto infinito, bordando pontos para<br />
contenção de um gozo que entorna pelo corpo. Ele inicia uma série, relacionando os<br />
livros que escreveu a partir do número 57. Número que inicia a série na qual o zero não<br />
se escreveu sobre o nada que o precedia 99 . Mas nos parece que algo aí ainda não se<br />
escreve mesmo assim. Será que podemos dizer que todo seu trabalho é uma tentativa no<br />
sentido desse ciframento, desse enodamento? Decifrar cifrando, como diz Lacan?<br />
Com o trabalho delirante, aliado à pintura, ele evita, podemos hipotetizar, uma<br />
passagem ao ato, que cede lugar à escrita dedicada a cernir esse significante que retorna<br />
97 “O desejo geral de negar, o negativismo que é apresentado por alguns psicóticos, deve provavelmente<br />
ser encarado como sinal de uma desfusão [desamalgamar] de pulsões efetuada através de uma retirada<br />
[subtração] dos componentes libidinais” (FREUD, 1925/1976, p. 300).<br />
98 Cf. fotos no Anexo V.<br />
99 Agora seus pequenos cadernos são escritos, entregues à analista, que os xeroca e os devolve para que<br />
ele os assine. A idéia é a de que ele dê um nome ao que escreve, introduzindo um ponto de parada onde<br />
antes havia puro deslize. Ele ia escrevendo e dando seus livros sem cessar. Agora ela tenta introduzir um<br />
ponto de basta. O efeito, interessante, é o início da escrita de cartas, com destinatário. Ele não escreve<br />
mais sob a submissão das idéias de um Outro, dirigindo seu produto para um Outro anônimo. A<br />
numeração dos cadernos segue a mesma lógica. Hoje cada caderno recebe um nome e um número. Ele<br />
marca a incerteza, mas não fica perdido nela.<br />
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