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Andréa Máris Campos Guerra - CliniCAPS

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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

Para ilustrar essa dificuldade do pensamento, Lacan recorre a um estilo de linguagem<br />

escrita característico da Idade Média. Nele há pouca gramática e muita lógica. É um<br />

estilo que recorre a uma passagem da imagem à escrita, e também, sempre, ao equívoco<br />

e ao convite a que o leitor participe da construção do texto. Ele pode ser lido e não<br />

produzir sentido, ao mesmo tempo em que do texto se destaca um novo e outro sentido,<br />

se lido pelas entrelinhas ou pelo que não faz linha, cadeia. Trata-se, enfim, do texto<br />

“Les Bigarrures de Seigneur des Accords”, de Étienne Tabourot 80 .<br />

A questão que Lacan evoca, a partir desse texto, é a de como conseguir apreender esse<br />

tipo de delicadeza que, em última instância, é um uso do inconsciente. E mais, como<br />

precisar a maneira pela qual, nessa delicadeza, se especifica o inconsciente que é<br />

sempre individual. Se a estrutura da linguagem é a mesma para todos, o uso de lalíngua<br />

é sempre único para cada sujeito. A articulação que o inconsciente estabelece como<br />

forma de gozo é sempre singular à maneira como o sujeito se articula na língua mãe.<br />

O exemplo de fetichismo apresentado no artigo freudino de mesmo título é ilustrativo<br />

da dimensão clínica desse uso. Ao discutir as circunstâncias acidentais que contribuem<br />

para a escolha de um objeto fetiche, Freud trata da arbitrariedade do significante de um<br />

lado, mas revela, de outro, a dimensão de gozo presente em lalíngua e capturada como<br />

letra em seus efeitos sobre a linguagem e sobre o corpo. Trata-se de um jovem para<br />

quem a pré-condição fetichista residia num certo tipo de ‘brilho no nariz’. A surpresa de<br />

sua explicação reside no fato de que o paciente recorrera a sua língua mãe, o inglês, para<br />

constituir o sintoma e a forma de gozo que lhe era correlata, enquanto correntemente<br />

utilizava a língua alemã do país onde passara a viver depois de sua primeira infância.<br />

80 Apresentamos em francês um verso do livro de Étienne Tauborot, referenciado por Lacan, destacando<br />

com cores as colunas que podem ser lidas verticalmente também, além da leitura horizontal tradicional,<br />

de sorte que a falta de sentido e o sentido que escapa podem ser revelados e apreendidos.<br />

« Autrefois j’ai fait ces suivants en faveur d’une de mes idoles parlantes :<br />

Ta beauté, ta vertu, ton esprit, ton maintien<br />

Éblouit, et défait, assoupit et renflamme<br />

Par ses rais, par penser, par crainte, pour un rien<br />

Mes deux yeux, mon amour, mes desseins, et mon âme. »<br />

(Étienne Tabourot, Les Bigarrures du Seigneur des Accords, Paris, Jean Richer, 1583, chapitre XIII,<br />

«Des vers rapportés », ff.130 à 134. [Gallica, N0070346_PDF_282_290])<br />

Outros versos no livro original podem ser visualizados através do site da Bibliothèque Nationale de<br />

France (BNF) no seguinte endereço eletrônico: < http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k70346j>.<br />

Podemos identificar «um tipo de cruzamento simétrico e gramatical», «frases de construção gramatical<br />

aparentemente desarticuladas e recompostas», uma «invenção astuciosa» que «remontaria talvez ao fim<br />

da Antiguidade grega», um «procedimento» que «da Idade Média latina [...] ganham as poesias francesa,<br />

espanhola, inglesa e alemã dos séculos XVI e XVII», segundo Ernst Robert Curtius em La Littérature<br />

européenne et le Moyen Âge latin, também disponível via acesso eletrônico no seguinte endereço:<br />

.<br />

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