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Andréa Máris Campos Guerra - CliniCAPS

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A estabilização psicótica na perspectiva borromeana: criação e suplência<br />

“[Eu estava com] dezoito, dezenove, dezenove anos. E nesses centros [de candomblé] é o<br />

seguinte: a gente fumava maconha e ficava ali. Eu ia de moto pra casa assistir Dom Artaud<br />

[sic] ou ia pra piscina nadar. Isso aí. É... fumava um e saía de moto curtindo, né? Uma coisa<br />

assim. Aí, nesse centro, eu falava, eu falei uma vez assim: ‘cabrito, olha teu corpo’. Aí<br />

ficou aquela coisa, eu falei a voz do Artaud no Teatro de Sangue, né? Aí depois eu botei um<br />

cobertor azul assim no chão, deitei do lado da minha moto assim, né? Aí eu falei assim:<br />

‘mostra teto’. Aí uma voz lá de dentro, uma voz da macumba, falou assim: ‘Ah! É o<br />

bicheiro!’ Uma coisa assim, né? Um apelido que botaram ali, naqueles micróbios ali. Isso<br />

que você chama de micróbios é Deus, foi isso que aconteceu, ali entendeu?” (Relato de A.<br />

em entrevista).<br />

Tal qual discutido por Lacan em relação a uma apresentação de paciente 95 , a alucinação<br />

retorna oferecendo um atributo que designa o sujeito, onde a hiância da indeterminação<br />

significante se encontrava, onde um sentido não era possível ser produzido. “É o<br />

bicheiro” é a palavra rejeitada no Outro, que é produzida no lugar do sujeito.<br />

“É assim que o discurso vem a realizar sua intenção de rejeição na alucinação. No lugar em<br />

que o objeto indizível é rechaçado no real, uma palavra faz-se ouvir, porque, vinda no lugar<br />

daquilo que não tem nome, ela não pode acompanhar a intenção do sujeito sem dele se<br />

desligar pelo travessão da réplica” (LACAN, 1957-58/1998, p. 541).<br />

Depois deste episódio, foi a intoxicação de A.<br />

“Isso que chama de micróbio, bicheira, que falou: ‘ah, bicheira!’. Aquele nome, aquela<br />

palavra que resume ou une todos aqueles processos espirituais de todas as coisas, é o<br />

micróbio. E isso que você chama de micróbios é Deus [inaudível]. E dali, então, foi que<br />

depois de tudo é que veio a intoxicação, a intoxicação...” (Relato de A. em entrevista).<br />

Intoxicação, bicheira, micróbios, Deus, o deslize significante não faz cadeia, cade-nó,<br />

mas enxame. São muitas vezes significantes do Outro que, não sendo subjetivados e<br />

apropriados, colam-se como etiquetas de identificação sobre A. no lugar daquilo que<br />

não tem nome. Revelam o que não se ata entre os três registros, a saber, o contorno que<br />

o Simbólico realizaria no recobrimento do Real. Ali resvala para os fenômenos<br />

imaginários do corpo o que a linguagem não sustenta no campo simbólico. Podemos<br />

imaginar a rodela do Real, na qual Lacan localiza a vida, avançando sobre o campo do<br />

simbólico, solto, sem um grampo. Esse prolongamento é a ex-sistência, em relação ao<br />

95 Trata-se de uma paciente que tem uma alucinação verbal “porca”, à qual responde com “venho do<br />

salsicheiro”. Trata-se de um delírio a dois entre mãe e filha, no qual esta produz a significação das<br />

injúrias que ambas estariam sofrendo de seus vizinhos. Laurent (1995, p. 121-126) aponta a importância<br />

decisiva da noção de shifter em Jakobson na releitura de Lacan deste caso. Para Jakobson, o shifter é o<br />

único elemento do código que remete obrigatoriamente à mensagem. Colocando em jogo esse novo<br />

operador, Lacan inclui o Outro no circuito a-a’, reintroduzindo-o como o próprio lugar do código, onde<br />

há um elemento que permite incluir o objeto visado na mensagem. Dessa maneira, primeiro a paciente<br />

teria alucinado a palavra “porca” e, então, respondido “venho do salsicheiro”. Como no caso de A., ele<br />

provavelmente escutou primeiro a alucinação verbal e somente depois teria elaborado a frase “mostra<br />

teto”. Ao que surge como enigma, o sujeito tenta conferir uma significação, marcada pela certeza<br />

psicótica.<br />

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