A dádiva da dor - Philip Yancey.pdf (1,8 MB) - Webnode
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distribuiu uniformemente a pressão, evitando que qualquer ponto recebesse estresse demasiado.<br />
Nunca mandei que um paciente de lepra fizesse uma corri<strong>da</strong> de doze quilômetros, pois isso seria totalmente<br />
irresponsável. A razão disso pode ser observa<strong>da</strong> vivi<strong>da</strong>mente pelas meias tira<strong>da</strong>s dos pés de um paciente após<br />
corri<strong>da</strong>s mais curtas: as impressões antes e depois <strong>da</strong> corri<strong>da</strong> são virtualmente idênticas. O passo do paciente não<br />
mudou. Com os caminhos <strong>da</strong> <strong>dor</strong> silenciados, seu sistema nervoso central não percebeu a necessi<strong>da</strong>de de fazer<br />
ajustes e, portanto, a mesma pressão ficou martelando o mesmo espaço <strong>da</strong> superfície do pé. Se eu man<strong>da</strong>sse um<br />
paciente de lepra correr doze quilômetros, o termograma teria mostrado apenas uma ou duas áreas de pontos<br />
quentes avermelhados, sinais de tecido <strong>da</strong>nificado. Alguns dias mais tarde, provavelmente eu iria encontrar uma<br />
feri<strong>da</strong> plantar na sola do seu pé. Os corre<strong>dor</strong>es de longa distância raramente têm úlceras plantares, enquanto isso<br />
ocorre frequentemente com os pacientes leprosos.<br />
Hoje em dia, ferimentos devidos ao estresse repetitivo são largamente reconhecidos como um problema<br />
importante nos ambientes de alta tecnologia. Mais de duzentos mil funcionários de escritórios e fábricas nos<br />
Estados Unidos são tratados a ca<strong>da</strong> ano por sofrerem de tais condições, respondendo por 60 por cento <strong>da</strong>s doenças<br />
ocupacionais no país. A frequência dobrou em menos de uma déca<strong>da</strong>, principalmente porque a tecnologia tende a<br />
reduzir a varie<strong>da</strong>de de movimentos exigidos, aumentando assim o estresse repetitivo. Por exemplo, uma ação tão<br />
inócua quanto a digitação, ou usar um joystick de videogame, pode pela repetição constante sujeitar o pulso a<br />
pressões que produzem a síndrome do túnel carpal. Os teclados dos computa<strong>dor</strong>es têm muito mais probabili<strong>da</strong>de<br />
de causar <strong>da</strong>nos do que as máquinas de escrever mecânicas porque o <strong>da</strong>tilógrafo não tem mais o alívio de levantar<br />
a mão para mover o carro ou fazer uma pausa para mu<strong>da</strong>r o papel. Nos Estados Unidos, os <strong>da</strong>nos causados pelo<br />
estresse repetitivo custam sete bilhões de dólares por ano em per<strong>da</strong> de produtivi<strong>da</strong>de e custos médicos.<br />
SINTONIZANDO<br />
Foram necessários muitos anos de pesquisa para conseguir um panorama completo, mas finalmente entendi. A <strong>dor</strong><br />
emprega uma ampla escala tonal de conversação. Ela sussurra nos primeiros estágios: em nível subconsciente<br />
sentimos um leve desconforto e mu<strong>da</strong>mos de posição na cama, ou ajustamos um passo na caminha<strong>da</strong>. Fala mais<br />
alto à medi<strong>da</strong> que o perigo aumenta: a mão fica sensível depois de trabalhar muito tempo recolhendo folhas com o<br />
ancinho, o uso de sapatos novos machuca o pé. A <strong>dor</strong> grita quando o perigo se torna severo: ela força a pessoa a<br />
mancar, ou até a pular num pé só, ou mesmo a deixar de correr.<br />
Nossos projetos de pesquisa em Carville estavam oferecendo meios ca<strong>da</strong> vez mais poderosos para ficarmos<br />
"sintonizados" com a <strong>dor</strong>, à semelhança dos astrônomos que apontam telescópios ca<strong>da</strong> vez mais poderosos para o<br />
céu. Nossos instrumentos apontavam para o zumbido incessante <strong>da</strong>s conversas intercelulares que tão alegremente<br />
subestimamos — ou até desprezamos. Como resultado de nossas experiências, fiz um esforço consciente para<br />
começar a ouvir as minhas mensagens pessoais de <strong>dor</strong>.<br />
Gosto de caminhar nas montanhas. O fato de morar na Louisiana restringiu essa ativi<strong>da</strong>de, mas, sempre que podia,<br />
numa viagem de volta aos montes rochosos <strong>da</strong> Índia ou nas montanhas do oeste americano, fazia caminha<strong>da</strong>s e<br />
tentava <strong>da</strong>r mais atenção aos meus pés. Geralmente eu começava o dia com um passo longo, enérgico, levantando<br />
o calcanhar e empurrando vigorosamente com os dedos dos pés. No decorrer <strong>da</strong> manhã, podia sentir meus passos<br />
encurtando um pouco e o peso mu<strong>da</strong>ndo do dedão para os demais. Eu havia tirado muitas impressões de meus pés<br />
com as slipper-socks, sendo então fácil para eu visualizar as mu<strong>da</strong>nças que aconteciam. Depois do almoço notei<br />
que an<strong>da</strong>va com passos ain<strong>da</strong> mais curtos. No fim do dia, mal levantava o calcanhar, quase arrastava os pés — o<br />
an<strong>da</strong>r de um velho. Esse tipo de an<strong>da</strong>r usava to<strong>da</strong> a superfície <strong>da</strong> minha sola para ca<strong>da</strong> passo, mantendo assim a<br />
pressão baixa em qualquer ponto.<br />
Eu antes considerara esses ajustes como evidência de fadiga muscular. Como nossa pesquisa evidenciara, porém,<br />
eles eram de fato muito mais devidos à fadiga <strong>da</strong> pele do que do músculo. Compreendo agora as mu<strong>da</strong>nças como<br />
o meio leal de meu corpo distribuir os estresses, dividindo o peso do an<strong>da</strong>r entre diferentes músculos e tendões e<br />
sobre diferentes seções <strong>da</strong> pele. Às vezes eu ficava com bolhas nos pés. Em vez de me ressentir delas, agora as<br />
aceitava como o protesto barulhento de meu corpo contra o excesso de uso. O desconforto deles me fazia agir,<br />
tirar os sapatos e descansar, ajustar ain<strong>da</strong> mais o passo ou acrescentar uma cama<strong>da</strong> de meias para evitar a fricção.<br />
A Dádiva <strong>da</strong> <strong>dor</strong> » 111