A dádiva da dor - Philip Yancey.pdf (1,8 MB) - Webnode
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Realizei certa vez a "transferência de um flape" num homem de sessenta anos cujo nervo mediano fora <strong>da</strong>nificado<br />
num acidente com uma arma. Ele não tinha sensação em seus dedos polegar e indica<strong>dor</strong>, mas o dedo mínimo e o<br />
anular, alimentados por um nervo diferente, funcionavam bem. A cirurgia recomen<strong>da</strong><strong>da</strong> era transferir para o<br />
polegar e o indica<strong>dor</strong> dois flapes de pele sensível juntamente com seu suprimento nervoso, ambos extraídos de dedos<br />
menos importantes. Fiz o procedimento e duas semanas mais tarde avaliei a operação como um sucesso.<br />
Agora ele tinha sensações e a possibili<strong>da</strong>de de vários movimentos com o polegar e o indica<strong>dor</strong>.<br />
To<strong>da</strong>via, após vários meses, aquele paciente atormentado começou a questionar se deveria ter feito a cirurgia. O<br />
problema estava em sua mente. Durante sessenta anos seu cérebro armazenara to<strong>da</strong>s as mensagens <strong>da</strong>queles dois<br />
flapes sob as categorias "dedo anular" e "dedo mínimo". As ações que seu cérebro ordenava agora não<br />
combinavam com as que recebera antes, e o cérebro não conseguia reorientar-se. Se o homem pegasse um<br />
atiça<strong>dor</strong> quente e o cérebro desse uma ordem de emergência para que o soltasse, ele relaxava o dedo mínimo, e<br />
não o polegar. Por mais que tentasse, na sua i<strong>da</strong>de não conseguia reprogramar o cérebro para pensar "polegar" em<br />
vez de "dedo mínimo".<br />
O isolamento do cérebro em sua caixa de marfim, o crânio, que eu vira tão graficamente durante a dissecação em<br />
Cardiff, é o que torna a reprogramação tão difícil. O cérebro aprende a contar com sinais elétricos deste nervo<br />
para representar o polegar, e <strong>da</strong>quele para representar o dedo mínimo. O toque é geralmente a mais confiável <strong>da</strong>s<br />
sensações. A visão pode mostrar-se ilusória e a audição pode mentir, mas o toque envolve o meu ser — ele inclui<br />
minha pele. Da perspectiva do cérebro, parece que estou enganando a mim mesmo se de repente novas sensações<br />
começam a emanar do lugar "errado". Se alguém por brincadeira fizesse uma nova fiação elétrica em minha casa,<br />
de modo que a chave que sempre controlara a cafeteira agora controlasse o rádio, eu aprenderia a a<strong>da</strong>ptar-me<br />
depois de algumas tentativas. Mas os caminhos neurais estão dentro de mim, são uma parte de mim, e contribuem<br />
fun<strong>da</strong>mentalmente para a minha noção <strong>da</strong> reali<strong>da</strong>de.<br />
A mente não pode confiar facilmente em sinais que contradizem to<strong>da</strong> a sua história, e um paciente jamais se<br />
a<strong>da</strong>ptará a não ser que apren<strong>da</strong> a superar a sensação de engano, reeducando o cérebro. 1 Aprendi que numa pessoa<br />
jovem é possível transferir um músculo para fazer uma ação contrária ao que originalmente fazia. Por exemplo,<br />
no caso de John Krishnamurthy, escolhemos um dos dois músculos usados para dobrar o dedo e o religamos para<br />
que endireitasse o dedo. Seu cérebro teve de aprender que uma <strong>da</strong>s ordens anteriores para "Dobre!" ain<strong>da</strong><br />
produzia um dedo dobrado, enquanto a outra produzia o resultado oposto. Quando as pessoas envelhecem, tais<br />
mu<strong>da</strong>nças de reprogramação no cérebro se tornam ca<strong>da</strong> vez mais difíceis. Finalmente nós tivemos de deixar de<br />
fazer transferências radicais de tendão para qualquer um de nossos pacientes leprosos com mais de sessenta anos.<br />
Se tentássemos converter músculos para desempenhar uma tarefa completamente nova, os cérebros dos mais<br />
idosos não conseguiriam fazer os ajustes de reprogramação.<br />
Tentei encorajar meus pacientes de lepra em seus esforços de reprogramação.<br />
— Você tem um tipo de vantagem — afirmei. — Pode concentrar-se no movimento. Pense como seria confuso se<br />
tivesse de li<strong>da</strong>r também com falsas sensações.<br />
To<strong>da</strong>via, tive a distinta impressão de que a maioria deles teria preferido mensagens falsas a nenhuma mensagem.<br />
Por mais que os advertisse previamente, pareciam desapontados ao descobrir que as nossas cirurgias não<br />
restauravam a sensação. Podiam agora rodear com os dedos uma tigela pastosa de arroz, mas o arroz parecia<br />
neutro, o mesmo que madeira ou grama ou veludo. Eles ganhavam a habili<strong>da</strong>de de apertar as mãos <strong>da</strong>s pessoas,<br />
mas não podiam sentir o calor, a textura e a firmeza <strong>da</strong> mão que seguravam. Tive de ensiná-los a não apertar com<br />
muita força a mão de outrem; como o homem <strong>da</strong> sandália em Chingleput, eles não sabiam quando estavam<br />
machucando o interlocutor. Para eles, o toque e a <strong>dor</strong> haviam perdido todo o significado. Logo depois que<br />
comecei a tentar fazer transferências de tendão, recebi uma visita inespera<strong>da</strong> do dr. William White, um professor<br />
de cirurgia plástica em Pittsburgh, Pensilvânia. Numa viagem, depois de visitar Lahore, no Paquistão, ele parou<br />
em Vellore por alguns dias para investigar o trabalho com leprosos. White concordou bondosamente em mostrarme<br />
uma nova técnica de transferência de tendão. Preparamos o paciente, nos lavamos e começamos a trabalhar.<br />
Senti-me aliviado ao ficar como observa<strong>dor</strong> de um experiente cirurgião de mãos. O procedimento levou quase três<br />
horas, com White <strong>da</strong>ndo detalhes e explicações a ca<strong>da</strong> passo.<br />
A Dádiva <strong>da</strong> <strong>dor</strong> » 73