A dádiva da dor - Philip Yancey.pdf (1,8 MB) - Webnode
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transportar-me pelos últimos quilômetros até o sanatório. Os Cochrane mantinham um quarto de hóspedes<br />
disponível para mim, e após uma boa noite de sono eu me levantava para um dia inteiro de exames nos pacientes.<br />
Após o jantar de sexta-feira com os Cochrane, eu me retirava cedo, marcando meu desperta<strong>dor</strong> para as quatro e<br />
meia <strong>da</strong> manhã. Bob <strong>da</strong>va uma aula matinal na facul<strong>da</strong>de de medicina de Vellore aos sábados, e eu podia então<br />
pegar carona no carro dele.<br />
Organizei uma turma de técnicos como uma linha de montagem, e examinávamos um a um os mil pacientes em<br />
Chingleput. Testando com uma pena e um alfinete reto, mapeávamos a sensibili<strong>da</strong>de ao toque e à <strong>dor</strong> nas várias<br />
regiões <strong>da</strong> mão. A seguir, medíamos a extensão do movimento do polegar, dedos e pulso, e repetíamos o processo<br />
para os dedos dos pés e o pé. Registrávamos o tamanho exato dos dedos <strong>da</strong> mão e do pé, notando quais os dedos<br />
que haviam encurtado e quais músculos pareciam paralisados. Se houvesse paralisia facial, notávamos isso<br />
também. Os casos mais interessantes eram radiografados.<br />
Como eu só passava um dia <strong>da</strong> semana em Chingleput, a pesquisa se arrastou por meses. Antes, porém, eu notara<br />
um padrão claro entre os pacientes (80 por cento, conforme estabelecido) que haviam experimentado algum grau<br />
de paralisia <strong>da</strong> mão. Quase todos eles tinham perdido o movimento dos músculos controlados pelo nervo ulnar.<br />
Quarenta por cento mostravam também evidência de paralisia em áreas supri<strong>da</strong>s pela parte inferior do nervo mediano.<br />
De maneira estranha, não encontrei paralisia nos músculos do antebraço supridos pela parte superior do<br />
nervo mediano. Poucos músculos controla<strong>da</strong>s pelo nervo radial haviam sido afetados. Também não encontrarmos<br />
paralisia acima do cotovelo. Esta fora a anomalia que eu notara no homem <strong>da</strong>s sandálias: ele podia dobrar os<br />
dedos, mas não estendê-los.<br />
Eu nunca vira um padrão tão peculiar. Em algumas doenças, a paralisia avança inexoravelmente na direção do<br />
tronco, afetando todos os nervos em seu caminho. Em outras, como a poliomielite, a paralisia é completamente<br />
acidental. A lepra parecia atacar nervos específicos muito seletivamente, com uma estranha consistência. O que<br />
justificaria essa progressão singular?<br />
A essa altura meus instintos científicos estavam plenamente despertos. Até mesmo pacientes de lepra gravemente<br />
afetados retinham alguns nervos e músculos em bom estado, como o homem com a mão em garra havia<br />
demonstrado tão poderosamente em mim, um fato que abriu a fascinante possibili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> correção cirúrgica. Um<br />
paciente com mãos em garra ain<strong>da</strong> podia dobrar os dedos para dentro; se eu pudesse descobrir como libertá-los, a<br />
fim de se endireitarem para fora, ele recuperaria as funções <strong>da</strong> mão.<br />
Antes de prosseguir, porém, eu tinha de aprender muito mais. Li tudo o que existia sobre lepra e logo percebi a<br />
razão pela qual Bob Cochrane se empenhara nessa cruza<strong>da</strong>. Nenhuma moléstia na história tem sido tão marca<strong>da</strong><br />
pelo estigma, grande parte dele resultante <strong>da</strong> ignorância e de falsos estereótipos.<br />
A histeria a respeito <strong>da</strong> lepra surgiu, em parte, de um grande medo do contágio. No Antigo Testamento, o<br />
indivíduo que sofria de lepra ou de doenças infecciosas <strong>da</strong> pele tinha de usar "vestes rasga<strong>da</strong>s, e os seus cabelos<br />
serão desgrenhados; cobrirá o bigode e clamará: Imundo! Imundo!" (Lv 13:45). As pessoas com lepra viviam<br />
isola<strong>da</strong>s, fora dos muros <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de. Na maioria <strong>da</strong>s socie<strong>da</strong>des na história, um temor de contágio similar levou às<br />
leis governamentais <strong>da</strong> quarentena.<br />
Esse medo, porém, como Bob Cochrane me assegurara, era em grande parte infun<strong>da</strong>do. A lepra só pode contagiar<br />
pessoas suscetíveis, uma pequena minoria. Em 1873, o cientista norueguês Armauer Hansen identificou o agente<br />
responsável pela lepra — Mycobacterium leprae, um bacilo bem semelhante ao <strong>da</strong> tuberculose — e desde então a<br />
lepra provou ser a menos transmissível de to<strong>da</strong>s as enfermi<strong>da</strong>des. O compatriota de Hansen, Daniel Cornelius<br />
Danielssen, o "pai <strong>da</strong> leprologia", tentou durante anos contrair a moléstia para fins experimentais, injetando com<br />
uma agulha hipodérmica o bacilo em si mesmo e em quatro funcionários de seu laboratório. Esses esforços<br />
demonstraram uma incrível coragem, mas pouco mais que isso: todos os cinco eram imunes. 1<br />
O enigma <strong>da</strong> transmissão permanece insolúvel até hoje. O grupo mais vulnerável parece ser o <strong>da</strong>s crianças que<br />
têm contato prolongado com pessoas infecta<strong>da</strong>s e, por essa razão, em muitos países, as crianças são separa<strong>da</strong>s dos<br />
pais infectados. A maioria dos clínicos favorece a teoria de que a lepra é dissemina<strong>da</strong> pelas vias aéreas superiores,<br />
A Dádiva <strong>da</strong> <strong>dor</strong> » 60