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A dádiva da dor - Philip Yancey.pdf (1,8 MB) - Webnode

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do ser humano. Uma poetisa renoma<strong>da</strong> que acabou de receber um prêmio literário volta ao seu lugar, curva-se<br />

para receber os aplausos, arranja graciosamente a saia, inclina-se para sentar-se e depois, sem qualquer elegância,<br />

lança um grito agudo. Ela acomodou-se sobre uma ponta aguça<strong>da</strong> <strong>da</strong> cadeira, e seu cérebro, desprezando qualquer<br />

decoro, só atende aos sinais de aflição emanados pela parte inferior de seu corpo. Um cantor de ópera, cuja<br />

carreira depende <strong>da</strong> recepção crítica do desempenho <strong>da</strong>quela noite, sai correndo do palco para tomar um copo<br />

d'água a fim de acalmar o prurido em sua garganta. Um joga<strong>dor</strong> de basquete se contorce no chão diante de uma<br />

audiência de vinte milhões de especta<strong>dor</strong>es; o sistema <strong>da</strong> <strong>dor</strong> não se importa na<strong>da</strong> com as triviali<strong>da</strong>des do decoro e<br />

<strong>da</strong> vergonha. Ao envolver tão proeminentemente o cérebro superior, a reação à autoproteção domina to<strong>da</strong>s as<br />

outras.<br />

A segun<strong>da</strong> vantagem do envolvimento do cérebro superior, disse Eccles, é que o desprazer se grava na memória,<br />

protegendo-nos assim no futuro. Quando me queimo ao tocar uma panela quente, decido usar uma luva ou pegapanelas.<br />

O próprio desprazer <strong>da</strong> <strong>dor</strong> — a parte que detestamos — a torna eficaz com o tempo.<br />

A <strong>dor</strong> é única entre as sensações. Outros sentidos tendem a tornar-se habituais, ou diminuem com o tempo: os<br />

queijos mais fortes parecem virtualmente sem cheiro depois de oito minutos; os sensores do toque se ajustam<br />

rapi<strong>da</strong>mente a roupas ásperas; um professor distraído procura em vão seus óculos, não sentindo mais o peso deles<br />

na cabeça. Em contraste, os sensores <strong>da</strong> <strong>dor</strong> não se tornam hábito, mas se reportam incessantemente ao cérebro<br />

consciente enquanto o perigo existir. Um projétil penetra durante um segundo e sai; a <strong>dor</strong> resultante pode perdurar<br />

um ano ou mais.<br />

De maneira interessante, porém, esta sensação que se sobrepõe a to<strong>da</strong>s as outras é a mais difícil de lembrar<br />

quando desaparece. Quantas mulheres juraram: "Nunca mais passo por isso" depois de um parto difícil? Quantas<br />

recebem a notícia de uma nova gravidez com alegria? Posso fechar os olhos e lembrar de uma constelação de<br />

cenas e rostos do passado. Mediante puro esforço mental, posso quase reproduzir o cheiro de um vilarejo indiano<br />

ou o sabor do curry de galinha. Posso repetir mentalmente temas familiares de hinos, sinfonias e canções<br />

populares. Entretanto, mal consigo lembrar de alguma <strong>dor</strong> excruciante. Crises de vesícula biliar, agonia causa<strong>da</strong><br />

por uma hérnia de disco, um acidente de avião — as lembranças chegam a mim despi<strong>da</strong>s do sentimento de<br />

desagrado. To<strong>da</strong>s essas características <strong>da</strong> <strong>dor</strong> servem o seu propósito final: galvanizar o corpo inteiro. A <strong>dor</strong><br />

encolhe o tempo para o momento presente. Não há necessi<strong>da</strong>de de a sensação perdurar depois que o perigo<br />

passou, e ela não ousa tornar-se hábito enquanto ele permanece. O que importa ao sistema <strong>da</strong> <strong>dor</strong> é que você se<br />

sinta suficientemente mal para suspender o que está fazendo e prestar atenção agora.<br />

Nas palavras de Elaine Scarry, a <strong>dor</strong> "desmancha o mundo do indivíduo". Tente conversar casualmente com uma<br />

mulher nos estágios finais do parto, ela sugere. A <strong>dor</strong> pode sobrepujar os valores que mais estimamos, um fato<br />

que os tortura<strong>dor</strong>es conhecem muito bem: eles usam a <strong>dor</strong> física para arrancar <strong>da</strong> pessoa informação que um<br />

momento antes ela considerava preciosa ou até sagra<strong>da</strong>. Poucos podem transcender a urgência <strong>da</strong> <strong>dor</strong> física — e é<br />

exatamente esse o seu propósito.<br />

Notas<br />

1 Para aju<strong>da</strong>r no diagnóstico <strong>da</strong> <strong>dor</strong>, o colega de Wall, Ronald Melzack, desenvolveu uma tabela de <strong>dor</strong> basea<strong>da</strong> na perspectiva do paciente. Ele notou que os<br />

pacientes tendiam a usar certas combinações de palavras ao descrever determina<strong>da</strong>s indisposições. Palavras como vago, inflamado, dolorido ou pesado<br />

descrevem um tipo diferente de <strong>dor</strong> do que agudo, cortante, dilacerante, quente, queimando, escal<strong>da</strong>nte; ou saltando, latejando, pulsando. Melzack<br />

admite que essas palavras são metafóricas, como quase to<strong>da</strong> a nossa conversa sobre <strong>dor</strong>. "Parece que alguém está golpeando meus olhos com uma agulha<br />

de tricô", alguém que sofre de enxaqueca poderia dizer, ou uma corre<strong>dor</strong>a feri<strong>da</strong> poderia descrever sua perna como "em fogo", embora nenhum deles<br />

tenha experimentado a <strong>dor</strong> real de ser golpeado nos olhos com agulhas de tricô ou de a sua perna ter sido coloca<strong>da</strong> sobre o fogo. Devemos nos apoiar em<br />

imagens toma<strong>da</strong>s de empréstimo para expressar o inexprimível. Descrevemos uma <strong>dor</strong> como a produzi<strong>da</strong> por uma faca, imaginando a faca cortando a<br />

carne, embora os que foram esfaqueados descrevam uma sensação inteiramente diversa: não a penetração rápi<strong>da</strong> e violenta, mas um golpe que se recebe e<br />

que não cessa.<br />

2 Um indivíduo hipnotizado com alergias conheci<strong>da</strong>s pode não ter reação quando tocado por uma folha venenosa, caso lhe assegurem tratar-se de uma folha<br />

inofensiva de castanheiro. Mas, se o pesquisa<strong>dor</strong> disser: "Agora estou tocando você com a folha venenosa" e aplicar em lugar dela uma folha de<br />

castanheiro, a pessoa pode ter uma crise de urticária!<br />

Verrugas algumas vezes desaparecem <strong>da</strong> noite para o dia por ordem de um hipnotiza<strong>dor</strong>, um feito fisiológico envolvendo uma reorganização importante<br />

<strong>da</strong>s células <strong>da</strong> pele t dos vasos sanguíneos que a medicina não pode duplicar ou explicar. Quando eu frequentava a escola de medicina, tive bastante<br />

A Dádiva <strong>da</strong> <strong>dor</strong> » 134

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