A dádiva da dor - Philip Yancey.pdf (1,8 MB) - Webnode
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— Dói, papai? — eles perguntavam enquanto eu limpava um corte na mão e o lavava com sabão.<br />
Explicava-lhes então que doía, mas que isso era uma coisa boa. A <strong>dor</strong> me faria tomar mais cui<strong>da</strong>do. Deixaria de<br />
li<strong>da</strong>r no jardim por alguns dias para <strong>da</strong>r à minha mão machuca<strong>da</strong> um período de repouso. A <strong>dor</strong>, eu salientava,<br />
<strong>da</strong>va-me uma grande vantagem sobre nossos amigos Namo, Sa<strong>da</strong>n e os outros pacientes de lepra. Meu ferimento<br />
iria provavelmente sarar mais depressa, com menos perigo de complicações, porque eu sentia <strong>dor</strong>. Se pedisse hoje<br />
a meus filhos adultos que lembrassem a sua lição mais viva sobre a <strong>dor</strong>, é provável que todos mencionassem a<br />
mesma cena na Índia. Todos os verões nossa família se empilhava num carro e ro<strong>da</strong>va 450 quilômetros até um<br />
local magnífico no alto <strong>da</strong>s montanhas Nilgiri, uma região de mata virgem ain<strong>da</strong> vigia<strong>da</strong> por tigres e panteras.<br />
Nosso bangalô de verão, que nos fora emprestado pelo gerente de uma proprie<strong>da</strong>de de chá de cuja equipe<br />
havíamos tratado, ficava a cerca de cinquenta quilômetros <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de mais próxima numa clareira entre lagos e<br />
pastagens na montanha. Os Webb, outra família de funcionários de Vellore, quase sempre compartilhavam o<br />
nosso bangalô, e foi John Webb, um pediatra, que promoveu a lição memorável sobre a <strong>dor</strong>.<br />
Certo dia, dirigindo sua motocicleta na estra<strong>da</strong> sinuosa, não-asfalta<strong>da</strong> <strong>da</strong> montanha, John teve de desviar tão<br />
subitamente de um cão que a ro<strong>da</strong> bateu numa pedra, estourou e fez com que caísse <strong>da</strong> moto. O impulso o lançou<br />
derrapando ao longo do caminho pedregoso, batendo com força o queixo. Embora seus ferimentos não passassem<br />
de arranhões e contusões, pe<strong>da</strong>cinhos de terra e pedregulho penetraram na carne.<br />
Conhecendo minha opinião sobre a <strong>dor</strong>, John ficou feliz em permitir que eu fizesse dele uma lição objetiva para as<br />
crianças.<br />
— Paul, você sabe o que deve fazer — disse ele. — Não me importo que seus filhos observem.<br />
Ele deitou-se no sofá, as crianças o cercaram e eu peguei uma bacia, sabão comum e uma escova dura de unhas.<br />
Não tinha anestésicos para oferecer.<br />
Durante a Segun<strong>da</strong> Guerra Mundial, John servira como oficial médico no exército que invadira a Itália. Ele deu<br />
instruções aos médicos sobre a importância de remover ca<strong>da</strong> partícula de terra e sujeira dos ferimentos, a fim de<br />
prevenir infecções. Agora que chegara a sua vez, apenas cerrou os dentes e fez caretas. Eu escovei a carne viva<br />
com minha escova espumando e meus filhos forneceram os efeitos sonoros.<br />
— Ooh!Eca!<br />
— Não consigo olhar.<br />
— Dói?<br />
— Vamos, Paul. Pode continuar — dizia John com os dentes cerrados ao sentir que eu estava afrouxando.<br />
Escovei até não ver na<strong>da</strong> além <strong>da</strong> pele rosa<strong>da</strong> e <strong>da</strong> derme mais profun<strong>da</strong> sangrando. Depois apliquei um unguento<br />
antisséptico calmante.<br />
Nos dias que se seguiram, as crianças tiveram um pequeno curso de fisiologia enquanto John e eu expúnhamos a<br />
magia do sangue e <strong>da</strong> pele e seus notáveis agentes de reparos. Ele não tomou aspirina ou outro analgésico, e meus<br />
filhos aprenderam que é possível suportar a <strong>dor</strong>. Mais importante ain<strong>da</strong> foi talvez verem John aceitando a <strong>dor</strong><br />
como parte valiosa do processo de recuperação. Todos os dias, ele afastava os curativos para verificar o progresso<br />
<strong>da</strong> cura e depois nos <strong>da</strong>va um relatório sobre a <strong>dor</strong> que sentia. Seu corpo falava na linguagem <strong>da</strong> <strong>dor</strong>, forçando-o a<br />
tomar maiores precauções. Mastigava vagarosa e delibera<strong>da</strong>mente os alimentos. Dormia de costas ou de lado. E<br />
pelo resto de nossas férias não mais andou de motocicleta.<br />
Meus filhos aprenderam muito bem a mensagem. Ao pendurar um quadro na parede de volta a Vellore logo<br />
depois <strong>da</strong>s férias, dei uma bati<strong>da</strong> no polegar com um martelo. Deixei cair o martelo e comecei a pular, apertando o<br />
dedo machucado.<br />
— Graças a Deus pela <strong>dor</strong>, papai — gritou meu filho Christopher. — Graças a Deus pela <strong>dor</strong>!<br />
A Dádiva <strong>da</strong> <strong>dor</strong> » 136