A dádiva da dor - Philip Yancey.pdf (1,8 MB) - Webnode
A dádiva da dor - Philip Yancey.pdf (1,8 MB) - Webnode
A dádiva da dor - Philip Yancey.pdf (1,8 MB) - Webnode
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
— Não tem na<strong>da</strong> a ver com religião — disse-me ele em particular. — Com disciplina, esses homens<br />
aprenderam a controlar a <strong>dor</strong>, assim como o sangramento, as bati<strong>da</strong>s do coração e a respiração.<br />
Eu não entendia essas coisas, mas sabia que sempre que tentava enfiar alguma coisa em minha pele, até mesmo<br />
um alfinete reto, meu corpo recuava. Eu invejava o domínio dos faquires sobre a <strong>dor</strong>.<br />
Com minha inclinação para subir em árvores e an<strong>da</strong>r de búfalo, eu tinha algum conhecimento pessoal sobre a <strong>dor</strong><br />
e, para mim, ela era completamente desagradável. Cólica foi a pior <strong>dor</strong> que senti. Sabia que eram produzi<strong>da</strong>s por<br />
nematelmintos e pensava neles pelejando dentro de mim, enquanto meu intestino tentava expulsá-los. Para isso,<br />
tomei colhera<strong>da</strong>s de um medonho remédio, óleo de castor.<br />
Com a malária eu tive simplesmente de aprender a conviver. A ca<strong>da</strong> poucos dias e sempre na mesma hora, minha<br />
febre entrava em ativi<strong>da</strong>de.<br />
— Hora <strong>da</strong> cobra! — eu avisava meus amigos por volta <strong>da</strong>s quatro horas <strong>da</strong> tarde e corria para casa.<br />
A maioria deles também sofria de malária, por isso compreendiam. A temperatura do corpo sobe e desce, e<br />
quando chegam os tremores, os músculos <strong>da</strong>s costas têm espasmos, fazendo o corpo torcer-se e virar-se como<br />
uma cobra. O calor oferece algum alívio, e mesmo nos dias mais quentes eu me enfiava debaixo de cobertores<br />
pesados para aju<strong>da</strong>r a acalmar os estremecimentos que faziam os ossos chacoalharem.<br />
A <strong>dor</strong>, conforme aprendi, tinha o poder misterioso de dominar tudo o mais na vi<strong>da</strong>. Ela prevalecia sobre coisas<br />
essenciais, como sono, alimentação e brincadeiras na parte <strong>da</strong> tarde. Eu não subia mais em certas árvores, por<br />
exemplo, em deferência aos pequeninos escorpiões que viviam em sua casca.<br />
O trabalho de meus pais reforçava esta lição sobre a <strong>dor</strong> quase diariamente. Na Índia rural a queixa física mais<br />
comum era a <strong>dor</strong> de dentes agu<strong>da</strong>. Um homem ou uma mulher aparecia, tendo caminhado de um povoado a<br />
quilômetros de distância, com o rosto desfigurado pela <strong>dor</strong> e um trapo amarrado fortemente ao re<strong>dor</strong> <strong>da</strong> mandíbula<br />
incha<strong>da</strong>. Meus pais, sem cadeira de dentista, broca ou anestésico local para oferecer, tinham um único remédio.<br />
Meu pai sentava o paciente numa pedra ou montículo abandonado pelos cupins, talvez dissesse uma breve oração<br />
em voz alta, depois aplicava seu boticão no dente. Na maioria dos casos tudo acabava sem problemas: uma vira<strong>da</strong><br />
do pulso, um gemido ou berro, um pouco de sangue e ponto final. Muitas vezes os companheiros do paciente, que<br />
nunca tinham visto uma <strong>dor</strong> de dentes acabar tão depressa, aplaudiam, <strong>da</strong>ndo vivas ao boticão que segurava o<br />
dente ofensor.<br />
Este procedimento era bem mais difícil para minha mãe, uma mulher pequena. Ela costumava dizer: — Há duas<br />
regras para arrancar um dente. Uma é descer o boticão o mais fundo que puder, perto <strong>da</strong>s raízes, para que a coroa<br />
não quebre. A segun<strong>da</strong> regra: nunca soltar!<br />
Em alguns casos parecia que o paciente extraía seu próprio dente ao afastar-se enquanto mamãe se agarrava ao<br />
boticão com to<strong>da</strong>s as forças. To<strong>da</strong>via, os pacientes que gritavam mais alto e lutavam mais voltavam outra vez. A<br />
<strong>dor</strong> os obrigava.<br />
CURADORES COMPASSIVOS<br />
Em razão de praticar a medicina, meus pais eram estimados pelo povo de Kolli Malai. Meu pai estu<strong>da</strong>ra medicina<br />
tropical durante um ano no Livingstone College, uma escola preparatória de missionários; minha mãe se apoiava<br />
no que aprendera no Hospital Homeopático, em Londres. Apesar <strong>da</strong>s limitações do treinamento deles, ambos<br />
conseguiram exemplificar o lema original de Hipócrates: a boa medicina trata o indivíduo, e não simplesmente a<br />
doença.<br />
Meus pais eram missionários tradicionais que reagiam a qualquer necessi<strong>da</strong>de humana que encontrassem. Juntos,<br />
fun<strong>da</strong>ram nove escolas e uma cadeia de clínicas. Na agricultura, minha mãe teve pouco sucesso com suas hortas<br />
em Kollis, mas seu pomar de árvores cítricas prosperou. Meu pai preferia trabalhar na sua especiali<strong>da</strong>de,<br />
construções. Ele ensinou carpintaria para os meninos do povoado e depois como fabricar telhas quando se tornou<br />
A Dádiva <strong>da</strong> <strong>dor</strong> » 16