A dádiva da dor - Philip Yancey.pdf (1,8 MB) - Webnode
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em qualquer mês do ano. Mas o meu prazer em comer essas frutas não se compara absolutamente com minha<br />
experiência <strong>da</strong> infância. É possível que o mesmo princípio ajude a responder por uma tendência que parece quase<br />
universal nas reminiscências <strong>da</strong>s pessoas idosas: elas tendem a lembrar-se dos tempos difíceis com nostalgia. Os<br />
idosos trocam histórias sobre a Segun<strong>da</strong> Guerra Mundial e a Grande Depressão. Eles falam afetuosamente de nevascas,<br />
do banheiro do lado de fora <strong>da</strong> casa na infância e <strong>da</strong> época na escola em que comeram sopa enlata<strong>da</strong> e pão<br />
<strong>dor</strong>mido durante três semanas segui<strong>da</strong>s. Num ambiente de dificul<strong>da</strong>des e privações surgiram, porém, novos<br />
recursos de compartilhamento, coragem e interdependência que causaram prazer e até alegria inesperados.<br />
Sinto hoje uma inquietação nos Estados Unidos e em grande parte do ocidente. A vi<strong>da</strong> considera<strong>da</strong> boa já não<br />
parece tão boa como prometido. Os críticos se preocupam com a ideia de que os americanos estão ficando moles e<br />
fracos, uma "cultura de reclamações", com mais probabili<strong>da</strong>de de choramingar a respeito de um problema ou abrir<br />
um processo, em vez de esforçar-se para superá-lo. Como vivo nos Estados Unidos há quase três déca<strong>da</strong>s, tenho<br />
ouvido essas preocupações expressas por políticos, vizinhos e comentaristas <strong>da</strong> mídia. Para mim, o cerne do<br />
problema está na confusão básica relativa à <strong>dor</strong> e ao prazer.<br />
Posso arriscar-me a parecer um velho lembrando os "tempos antigos", mas não obstante suspeito de que a riqueza<br />
tornou o moderno ocidente industrializado um lugar mais difícil para experimentar o prazer. Esta é uma ironia<br />
profun<strong>da</strong>, porque nenhuma socie<strong>da</strong>de na história conseguiu eliminar tão bem a <strong>dor</strong> e explorar o ócio. A felici<strong>da</strong>de,<br />
to<strong>da</strong>via, tende a afastar-se <strong>da</strong>queles que a perseguem. Sempre esquiva, ela aparece em momentos inesperados<br />
como um subproduto, e não um produto.<br />
Um encontro com dois barbeiros, um na Califórnia e o outro na Índia, deu-me uma visão importante <strong>da</strong> natureza<br />
do contentamento, um estado de prazer profundo. Visitei o primeiro barbeiro em Los Angeles pouco antes de<br />
embarcar numa viagem ao exterior em 1960. Ele trabalhava num salão de azulejos brilhantes e aço inoxidável,<br />
usando equipamento de última geração, inclusive quatro cadeiras hidráulicas que subiam e desciam ao toque de<br />
um pe<strong>da</strong>l. O dono estava sozinho no salão naquela manhã e fiquei contente ao saber que poderia atender-me<br />
pouco antes do meu vôo.<br />
Homem ríspido, no fim <strong>da</strong> casa dos cinquenta, ele fez uso <strong>da</strong> ocasião para reclamar <strong>da</strong>s dificul<strong>da</strong>des do barbear<br />
moderno. — Mal posso sustentar-me hoje — disse ele. — Não consigo aju<strong>da</strong> responsável. Os barbeiros que<br />
trabalham para mim se queixam de suas gorjetas e exigem aumentos. Eles não têm ideia de como este trabalho é<br />
difícil. Tudo o que ganho tenho de entregar ao governo na forma de impostos. Ele continuou com um comentário<br />
amargo sobre a lentidão <strong>da</strong> economia, os absurdos <strong>da</strong> legislação sobre segurança no trabalho e a ingratidão de<br />
seus fregueses. Quando levantei-me <strong>da</strong> cadeira, senti vontade de pedir que me pagasse o preço de uma consulta a<br />
um terapeuta. Em vez disso, tive de entregar-lhe cinco dólares, uma quantia excessiva para um corte de cabelo<br />
naqueles dias.<br />
Passou-se um mês, durante o qual fiz viagens para a Austrália e lugares na Ásia antes de viajar para Vellore, na<br />
Índia. Tive novamente necessi<strong>da</strong>de de cortar o cabelo. Desta vez fui a um salão de barbeiro do outro lado <strong>da</strong> rua<br />
do hospital em Vellore. O barbeiro me indicou sua única cadeira, uma geringonça bem rústica de metal<br />
enferrujado e couro rachado, à qual faltava todo e qualquer tipo de estofamento. Quando sentei, ele desapareceu<br />
pela porta, levando uma bacia de metal bem gasta para buscar água. Ao voltar, arranjou meticulosamente uma fila<br />
de tesouras, pentes, uma navalha reta e máquinas manuais de cortar. Fiquei impressionado com o seu ar de serena<br />
digni<strong>da</strong>de. Era um mestre em sua profissão, que sabia ser valiosa. Teve tanto cui<strong>da</strong>do ao arranjar seus<br />
instrumentos como o faziam os meus enfermeiros na sala de cirurgias do outro lado <strong>da</strong> rua.<br />
No momento em que o barbeiro estava afiando a lâmina, pre-parando-se para cortar meu cabelo, seu filho de dez<br />
anos apareceu com um almoço quente que havia trazido de casa. O barbeiro olhou para mim com ar de desculpa e<br />
disse:<br />
— Senhor, por favor, compreen<strong>da</strong> que está na hora do meu almoço. Posso cortar seu cabelo quando terminar?<br />
— Claro — respondi, aliviado por ele não estar oferecendo tratamento especial para o estrangeiro usando um<br />
casaco de médico.<br />
A Dádiva <strong>da</strong> <strong>dor</strong> » 178