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A dádiva da dor - Philip Yancey.pdf (1,8 MB) - Webnode

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oração de agradecimento por estar trabalhando num cadáver, e não num ser vivo.<br />

Depois de um mês de dissecação tediosa, acrescentei alguns detalhes cosméticos à cabeça do meu cadáver. Pintei<br />

os nervos cranianos com um pigmento amarelo, <strong>da</strong> cor de manteiga fresca, para que se destacassem contra o osso<br />

e a matéria branca. O tom avermelhado <strong>da</strong>s veias serviu de complemento adequado e acrescentei um pouco de cor<br />

às artérias esmaeci<strong>da</strong>s. Senti orgulho do resultado final: doze linhas amarelas distintas serpenteavam através do<br />

osso e do músculo na direção do cérebro enrugado, no qual elas se abriam magnificamente em forma de leque.<br />

O professor West aprovou sorridente e colocou o espécime em exibição pública. Por alguns dias alimentei<br />

fantasias de uma carreira na neurocirurgia. No fim <strong>da</strong>s contas não me tornei um neurocirurgião, mas as semanas<br />

que passei com aquela cabeça de cadáver me aju<strong>da</strong>ram a compreender a estranha aliança que existe entre o<br />

cérebro e o resto do corpo humano.<br />

A CAIXA DE MARFIM<br />

Acima de tudo, o projeto de dissecação me ensinou a apreciar o esplêndido isolamento do cérebro humano. Para<br />

remover o manto espesso do crânio, eu havia perfurado uma linha uniforme de orifícios, enfiado uma serra Gigli<br />

entre eles, trabalhando com a serra para a frente e para trás, e levantando os quadrados como se fossem pontos de<br />

entra<strong>da</strong>. Uma nuvem fina de pó de osso pairou na sala naquele dia, e eu, exausto, saí <strong>da</strong>li impressionado com os<br />

meios utilizados pelo corpo para proteger o seu membro mais valioso.<br />

Ironicamente, o órgão no qual o corpo confia para interpretar o mundo vive num estado de confinamento solitário,<br />

distanciado desse mundo. O órgão que nos confere consciência se encontra além <strong>da</strong> nossa percepção consciente:<br />

ao contrário do estômago, ele não faz ruídos; ao contrário do coração, ele não se faz sentir quando trabalha; ao<br />

contrário <strong>da</strong> pele, não pode ser beliscado. O crânio, tão espesso que para cortá-lo eu tive de me inclinar em ângulo<br />

e colocar todo o meu peso sobre a serra, afasta o cérebro de qualquer contato direto com a reali<strong>da</strong>de. Escondido<br />

num crânio opaco, o cérebro nunca "vê" na<strong>da</strong>. Sua temperatura só varia alguns graus, e qualquer febre que exce<strong>da</strong><br />

essa pequena variação o mataria. Ele não ouve na<strong>da</strong>. Não sente <strong>dor</strong>: um neurocirurgião, uma vez dentro do crânio,<br />

pode explorar à vontade sem a necessi<strong>da</strong>de de mais anestésico. To<strong>da</strong>s as visões, sons, o<strong>dor</strong>es e outras sensações<br />

que definem a vi<strong>da</strong> chegam ao cérebro indiretamente: detecta<strong>da</strong>s nas extremi<strong>da</strong>des, escolta<strong>da</strong>s ao longo <strong>da</strong>s vias<br />

nervosas e anuncia<strong>da</strong>s na linguagem comum <strong>da</strong> transmissão nervosa. Para um cérebro isolado, não importa onde a<br />

informação tem origem. Borboletas e varejeiras, equipa<strong>da</strong>s com órgãos do pala<strong>da</strong>r nos pés, podem experimentar<br />

um refrigerante derramado entrando em contato com ele. Os gatos exploram o mundo com seus bigodes.<br />

No ano em que me encontrava em Cardiff, laboratórios de Plymouth, na Inglaterra, e de Woods Hole, em<br />

Massachusetts, fizeram as primeiras gravações de sinais elétricos do sistema nervoso. Ao inserir eletrodos nos<br />

axônios desproporcionais de uma lula, os cientistas puderam espreitar as células nervosas individuais. Eles<br />

ouviram uma série de cliques e pausas, muito semelhantes ao padrão do código Morse. Todo o reino animal usa o<br />

mesmo simples padrão "liga/desliga" para informar o cérebro. Um neurônio no ouvido humano, por exemplo,<br />

detecta uma vibração a uma certa frequência e envia um sinal, pausa um milésimo de segundo e se o estímulo<br />

persistir envia outro sinal. O cérebro propriamente dito não sente a vibração; recebe apenas um relatório, numa<br />

forma um tanto pareci<strong>da</strong> com o código digital usado nos CDS.<br />

A transmissão nervosa se apóia numa elegante combinação de química e eletrici<strong>da</strong>de. Ao longo do "fio", ou<br />

axônio, de um nervo estimulado, íons de sódio e potássio <strong>da</strong>nçam para dentro e para fora de uma membrana<br />

permeável, mu<strong>da</strong>ndo a carga elétrica de positiva para negativa enquanto ela sobe pelo axônio acima num padrão<br />

de on<strong>da</strong>s. To<strong>da</strong>s as sensações percebi<strong>da</strong>s — o cheiro de alho, uma visão do Grand Canyon, a <strong>dor</strong> de um ataque<br />

cardíaco, o som de uma orquestra — se reduzem a este processo <strong>da</strong>s células nervosas atirando íons carregados<br />

umas para as outras. 2 O cérebro tem a tarefa de interpretar todos esses códigos elétricos e apresentá-los ao<br />

consciente como uma imagem visual ou um som, um cheiro ou um golpe de <strong>dor</strong>, dependendo de sua natureza e<br />

origem.<br />

Em nível celular a rede de <strong>dor</strong> está incessantemente carrega<strong>da</strong> de informação, mas a maior parte nunca chega à<br />

posição de <strong>dor</strong> consciente porque nossos corpos li<strong>da</strong>m adequa<strong>da</strong>mente com os sinais. Os sensores em minha<br />

A Dádiva <strong>da</strong> <strong>dor</strong> » 32

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