A dádiva da dor - Philip Yancey.pdf (1,8 MB) - Webnode
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Este não é um livro de teologia, e não quero entrar no assunto profundo <strong>da</strong> causali<strong>da</strong>de divina. To<strong>da</strong>via, já vi tanto<br />
mal ser causado pela culpa que eu seria omisso caso não a mencionasse como um intensifica<strong>dor</strong> <strong>da</strong> <strong>dor</strong>. Centenas<br />
de pacientes de que tratei — muçulmanos, hindus, judeus e cristãos — se atormentaram com questões de culpa e<br />
castigo. O que fiz de errado? Por que eu? O que Deus está tentando me dizer? Por que mereço este destino?<br />
Como médico e cristão dedicado, tenho uma simples observação a fazer. Se Deus está usando o sofrimento<br />
humano como uma forma de castigo, ele certamente escolheu um meio obscuro de comunicar o seu desprazer. O<br />
fato mais básico sobre o castigo é que ele só funciona se a pessoa souber as razões do mesmo. E absolutamente<br />
prejudicial e não aju<strong>da</strong> em na<strong>da</strong> castigar uma criança, a não ser que ela compreen<strong>da</strong> a razão de estar sendo puni<strong>da</strong>.<br />
To<strong>da</strong>via, a maioria dos pacientes de que tratei sente-se principalmente confusa, e não disciplina<strong>da</strong> pelo<br />
sofrimento.<br />
— Por que eu? — perguntam, e não — Oh, claro, estou sendo punido pela luxúria <strong>da</strong> semana passa<strong>da</strong>.<br />
Na escola, eu sabia sempre por que estava sendo castigado, mesmo que algumas vezes discor<strong>da</strong>sse <strong>da</strong> decisão.<br />
Nos relatos bíblicos de castigo, as histórias não mostram indivíduos imaginando o que aconteceu. A maioria delas<br />
compreendia exatamente a razão <strong>da</strong> disciplina. Moisés anunciou ca<strong>da</strong> uma <strong>da</strong>s Dez Pragas diante do faraó<br />
egípcio; os profetas advertiram as nações corruptas com anos de antecedência. A história clássica do sofrimento,<br />
no livro de Jó, retrata um homem que claramente não estava sendo punido pelos erros cometidos — Deus chamou<br />
Jó de "homem íntegro e reto, temente a Deus e que se desviava do mal" (Jó 1:1).<br />
Esses exemplos bíblicos têm pouco em comum com a <strong>dor</strong> e o sofrimento de muita gente hoje. Milhões de crianças<br />
nascem com defeitos congênitos a ca<strong>da</strong> ano. A quem Deus está castigando e por quê? Um motorista bêbado cruza<br />
a faixa do meio e bate num carro. Um homem enlouquece e atira com um rifle num restaurante lotado. Qual a<br />
mensagem? Não vejo um paralelo entre o sofrimento que a maioria de nós experimenta hoje e o castigo apresentado<br />
na Bíblia, que se segue a repeti<strong>da</strong>s advertências contra comportamentos específicos. (A Bíblia dá muitos<br />
outros exemplos de sofrimento que, como o de Jó, na<strong>da</strong> tinham a ver com castigo. De fato, o próprio Jesus<br />
rejeitou a ideia dos fariseus de que a cegueira, coxeadura e lepra eram sinais do desfavor de Deus.)<br />
Quando morava em Londres, ain<strong>da</strong> criança, o vigário idoso de uma igreja <strong>da</strong> vizinhança escorregou numa casca<br />
de banana e caiu na calça<strong>da</strong>. Nós, crianças, caçoamos: — Imagine, caiu a caminha<strong>da</strong> igreja! Uma casca de<br />
banana! Talvez estivesse orando com os olhos fechados! Soubemos depois que ele quebrara a bacia na que<strong>da</strong> e<br />
deixamos de rir. Semanas se passaram e o vigário não teve alta do hospital. Houve infecção, depois pneumonia, e<br />
o vigário finalmente morreu. Tivemos vergonha do nosso riso.<br />
Essa experiência permaneceu comigo quando mais tarde tentei refletir sobre as questões de culpa e castigo. De<br />
quem era a culpa? É claro que não era <strong>da</strong> casca de banana em si, que fora perfeitamente destina<strong>da</strong> a manter a<br />
banana fresca e limpa até ser comi<strong>da</strong> ou cair para semear uma nova árvore. O incidente também dificilmente<br />
poderia ser chamado de "um ato de Deus". Deus não colocara a casca de banana na calça<strong>da</strong>; foi deixa<strong>da</strong> ali por alguém<br />
inconsequente que não se importava com manter a rua limpa e nem com os riscos que uma casca de banana<br />
representa para as pessoas de i<strong>da</strong>de.<br />
Mesmo muito jovem eu raciocinei que embora houvesse um agente humano, quem atirara a casca, o acidente era<br />
justamente isso, um acidente, e não envolvia uma mensagem oculta de Deus.<br />
Concluí eventualmente a mesma coisa sobre a morte de meu pai. Deus não enviou um mosquito de malária ao<br />
meu pai e ordenou que o mordesse. Pelo fato de viver numa região que abrigava mosquitos Anopheles, meus pais<br />
assumiram certos riscos; não acredito que a infecção dele resultasse de um ato direto de Deus. Na ver<strong>da</strong>de, parece<br />
seguro afirmar que a vasta maioria <strong>da</strong>s doenças e desastres não tem na<strong>da</strong> a ver com castigo.<br />
Nem sempre posso determinar cientificamente o que causou uma certa doença. Também não posso responder<br />
sempre às perguntas "Por quê?" de meus pacientes. Algumas vezes eu mesmo as faço. Mas, sempre que posso e<br />
sempre que meus pacientes parecem receptivos, esforço-me ao máximo para aliviá-los <strong>da</strong> culpa opressiva e<br />
desnecessária.<br />
A Dádiva <strong>da</strong> <strong>dor</strong> » 167