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A dádiva da dor - Philip Yancey.pdf (1,8 MB) - Webnode

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pude sentir o cheiro inconfundível de fluido intestinal vazando do ferimento cirúrgico. Fiquei perplexo e<br />

embaraçado. Anne voltou à sala de cirurgia e reabri a incisão. De modo estranho o ferimento abriu-se no momento<br />

em que cortei os pontos, como se não tivesse havido cura. Dentro do abdome encontrei o intestino vazando<br />

e doente. Desta vez fiz uma sutura meticulosa, usando pontos bem pequenos.<br />

Essas foram apenas as duas primeiras de uma série de cirurgias em Anne. Logo tornou-se claro que faltava ao seu<br />

corpo algum elemento crucial do processo de cura, O problema poderia ser devido à sua desnutrição e<br />

desidratação iniciais? Dei-lhe proteína e transfusões de sangue fresco, mas seus tecidos continuaram se<br />

comportando como se não tivessem responsabili<strong>da</strong>de na cura. Nenhum alarme soava, alertando uma parte do<br />

corpo à necessi<strong>da</strong>de de outra. Nós a mantivemos bem nutri<strong>da</strong> e tentei to<strong>da</strong>s as técnicas que pude pensar,<br />

envolvendo a junção do intestino com o omento 4 membranoso que o corpo usa para curar ferimentos acidentais.<br />

Mas o cirurgião fica impotente sem a colaboração <strong>da</strong>s células do corpo. Tiras de pele se recusavam a aderir, os<br />

músculos se abriam, e mais cedo ou mais tarde os fluidos intestinais escorriam aos poucos.<br />

Confesso que não conseguia manter "distância profissional" perto de Anne e seus pais. Anne ficava deita<strong>da</strong> com<br />

um sorriso doce e confiante enquanto eu a examinava, e seu rostínho tocava meu coração. Ela não parecia sentir<br />

muita <strong>dor</strong>, mas foi emagrecendo ca<strong>da</strong> vez mais. Eu olhava para os pais dela através <strong>da</strong>s lágrimas e apenas<br />

balançava a cabeça.<br />

Quando o corpo pequenino de Anne foi preparado para o enterro, chorei de tristeza e impotência. Chorei durante a<br />

i<strong>da</strong> ao cemitério quase como se fosse por meu próprio filho. Sentia-me um grande fracasso, embora suspeitasse<br />

que nenhum médico do mundo poderia ter mantido a pequena Anne viva por muito tempo.<br />

Durante mais de trinta anos, lembrei-me de Anne com um sentimento de fracasso. Certo dia então, muito tempo<br />

depois de ter mu<strong>da</strong>do para a Louisiana, recebi um convite para falar numa igreja em Kentucky. O pai de Anne era<br />

o pastor <strong>da</strong> igreja, que estava prestes a celebrar seu centésimo aniversário. Eu não soubera mais dele durante<br />

várias déca<strong>da</strong>s, e a carta chegou como uma completa surpresa. Aceitei o convite por obrigação e talvez por um<br />

sentimento de culpa que ain<strong>da</strong> perdurasse.<br />

Quando Otto Artopoeus me apresentou do púlpito, ele disse simplesmente:<br />

— Não preciso apresentar o doutor Brand. Já falei a todos vocês sobre ele. É o médico que chorou no funeral <strong>da</strong><br />

nossa Anne.<br />

A congregação acenou com a cabeça. Otto tentou dizer mais algumas palavras sobre a filha, mas não conseguiu.<br />

Naquela tarde fui à casa dos Artopoeus para almoçar, e ao re<strong>dor</strong> <strong>da</strong> mesa se reuniram to<strong>da</strong>s as crianças que<br />

haviam nascido depois de Anne, assim como a nova geração que esses filhos haviam produzido. Fui tratado com<br />

muito afeto e também estima, como um dignitário querido que saíra <strong>da</strong> história para entrar em suas vi<strong>da</strong>s. Eu me<br />

tornara claramente uma parte <strong>da</strong> tradição <strong>da</strong> família.<br />

Minha primeira reação à i<strong>da</strong> para Kentucky tinha sido uma ponta<strong>da</strong> de culpa e embaraço. Afinal de contas, eu fora<br />

o médico que deixara a filha dos Artopoeus morrer. Quando cheguei ali, porém, descobri que a família não tinha<br />

lembrança de um cirurgião que fracassara. Os filhos pareciam entesourar a história, repeti<strong>da</strong> à exaustão, de um<br />

cirurgião missionário que cui<strong>da</strong>ra de sua irmã Anne e chorara com a família quando ela morreu.<br />

No aspecto médico eu falhara com relação a to<strong>da</strong> a família. Mas aprendi, cerca de trinta anos depois, que o<br />

profissional <strong>da</strong> área <strong>da</strong> saúde tem mais a oferecer do que medicamentos e curativos. Ficar lado a lado com os<br />

pacientes e familiares em seu sofrimento é uma forma de tratamento em si.<br />

DESAMPARO<br />

Entrei em hospitais como paciente cinco vezes, e em ca<strong>da</strong> uma delas a capaci<strong>da</strong>de de gerenciar a <strong>dor</strong> desertou-me<br />

quando passei pela porta <strong>da</strong> frente. Em casa, onde remédios para aliviar a <strong>dor</strong> estão sempre disponíveis, eu<br />

raramente toco num deles. Como gosto de permanecer completamente a par de tudo o que meu corpo está fazendo<br />

A Dádiva <strong>da</strong> <strong>dor</strong> » 170

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