A dádiva da dor - Philip Yancey.pdf (1,8 MB) - Webnode
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Era chama<strong>da</strong> de "Mãe dos Montes", e essas são as palavras grava<strong>da</strong>s em seu túmulo hoje, numa sepultura ao lado<br />
<strong>da</strong> de meu pai,abaixo na encosta do bangalô onde cresci. Minha mãe morreu em 1975, algumas semanas antes de<br />
completar 96 anos.<br />
LEGADO FAMILIAR<br />
Minha mãe tornou-se uma espécie de len<strong>da</strong> nas montanhas do sul <strong>da</strong> Índia, e sempre que visito essa parte do país<br />
sou tratado como o filho há muito ausente de uma rainha muito ama<strong>da</strong>. O pessoal <strong>da</strong> colônia coloca um colar de<br />
flores em meu pescoço, serve um banquete em folhas de bananeira e acrescenta um programa de músicas e <strong>da</strong>nças<br />
tradicionais na capela. E inevitável que alguns fiquem de pé e contem reminiscências <strong>da</strong> Vovó Brand, como a<br />
chamam. Em minha última visita, a ora<strong>dor</strong>a principal era professora de uma escola de enfermagem. Disse ter sido<br />
uma <strong>da</strong>s crianças abandona<strong>da</strong>s ao lado <strong>da</strong> estra<strong>da</strong> e "adota<strong>da</strong>" por minha mãe, que a tratou até ficar saudável, deulhe<br />
um lugar onde viver e arranjou para a sua educação até o curso colegial.<br />
Não são tantas as pessoas que se lembram de meu pai, embora um médico indiano inspirado pela sua vi<strong>da</strong> tenha<br />
se mu<strong>da</strong>do recentemente para as Kollis e aberto a Clínica Memorial Jesse Brand. A casa onde nossa família viveu<br />
ain<strong>da</strong> está de pé, e nos fundos posso ver o lugar <strong>da</strong> minha casa na árvore bem no alto <strong>da</strong> jaqueira. Sempre visito as<br />
sepulturas com suas lápides gêmeas e to<strong>da</strong> vez choro ao lembrar-me de meus país, dois seres humanos amorosos<br />
que se entregaram plenamente a tantas pessoas. Tive poucos anos com eles, muito poucos. Mas, juntos, eles me<br />
deixaram um legado incalculável.<br />
Eu admirava o temperamento equilibrado de meu pai, seus conhecimentos, sua autoconfiança calma, coisas que<br />
faltavam à minha mãe. Porém, mediante muita coragem e compaixão, ela também abriu seu próprio caminho no<br />
coração do povo <strong>da</strong>s montanhas.<br />
A história do parasita filária, ponto focal de muitas cenas terríveis de sofrimento de minha infância, pode servir<br />
para captar a diferença de estilo de meus pais.<br />
A filaria infestava a maioria do povo <strong>da</strong>s montanhas em uma ou outra ocasião. Ingeri<strong>da</strong> na água potável, a larva<br />
penetrava na parede intestinal, entrava na corrente sanguínea e migrava para os tecidos moles, geralmente se<br />
estabelecendo em uma veia. Embora tivesse apenas a largura <strong>da</strong> grafite de um lápis, os vermes atingiam<br />
comprimentos enormes, podiam alcançar quase noventa centímetros. As vezes, era passível vê-los ondulando sob<br />
a pele. Quando uma feri<strong>da</strong> aparecia, por exemplo, no quadril de uma mulher que carregava uma vasilha de água, a<br />
cau<strong>da</strong> do parasita podia projetar-se para fora <strong>da</strong> feri<strong>da</strong>. To<strong>da</strong>via, se a mulher matasse o verme parcialmente<br />
exposto, o resto do corpo do parasita se decomporia dentro dela, causando uma infecção.<br />
Meu pai tratou centenas de infecções por filarias. Normalmente, eu gostava de vê-lo trabalhar, mas quando um<br />
desses pacientes aparecia, eu ia esconder-me correndo. Baldes de sangue e pus espirravam quando papai lancetava<br />
o braço ou coxa inchados. Ele ia golpeando ao longo <strong>da</strong> fila de abscessos com a faca ou escalpelo, procurando<br />
qualquer resíduo do verme decomposto. Não havendo anestésico disponível, o paciente só podia agarrar os braços<br />
e as mãos de parentes e sufocar o grito.<br />
Com sua mente inquisitiva de cientista, meu pai também estudou o ciclo de vi<strong>da</strong> do parasita. Ele aprendeu que a<br />
forma adulta era extremamente sensível à água fria, de cujo fato se aproveitou. Fazia o paciente ficar de pé num<br />
balde de água fria durante alguns minutos até que, prick, a cau<strong>da</strong> de uma filaria, aparecia através <strong>da</strong> pele e<br />
apressa<strong>da</strong>mente começava a botar ovos na água por meio de seu oviduto. Meu pai habilmente agarrava a cau<strong>da</strong> do<br />
parasita e a enrolava em volta de um graveto ou palito de fósforo. Ele puxava o suficiente para conseguir que<br />
alguns centímetros <strong>da</strong> filaria se enrolassem no graveto, mas não tão forte a ponto de quebrá-la; depois prendia o<br />
graveto na perna do paciente com adesivo. O verme se ajustava gradualmente para baixo, a fim de aliviar a tensão<br />
em seu corpo e várias horas depois meu pai podia enrolar mais alguns centímetros no graveto. Após muitas horas<br />
(ou vários dias no caso de uma filaria muito compri<strong>da</strong>), ele puxava o parasita inteiro e o paciente ficava livre dele,<br />
sem perigo de infecção.<br />
A Dádiva <strong>da</strong> <strong>dor</strong> » 19